O grupo de Cidades no governo de transição propôs que seja retirada da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) a edição de normas para a regulação do saneamento, transferindo essa competência para um departamento do futuro Ministério das Cidades, que será recriado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O grupo tem entre seus integrantes o deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL-SP) e o ex-governador de São Paulo Márcio França (PSB).
A sugestão de mudança encontra forte resistência em parcela importante do setor, que vê retrocesso na medida, encarada como um ataque ao modelo instaurado pelo marco legal do saneamento aprovado pelo Congresso em 2020.
“Tirar da ANA a competência de regulação e transferi-la para o ministério significa ferir de morte o novo marco do saneamento”, disse o economista e ex-presidente da Sabesp, Gesner Oliveira.
O advogado Maurício Portugal, especializado em aspectos regulatórios, apontou que transferir a função para o Ministério permitirá “interferência política” em um tema que deveria ser eminentemente técnico.
“Um telefonema de um prefeito (as prefeituras são as titulares dos serviços de saneamento) para um ministro pode mudar a edição de uma norma, por exemplo. Enquanto o que queremos é que essas normas sejam feitas de forma robusta, técnica, com equipe imunizada de questões políticas”, disse Portugal, integrante da equipe que redigiu o projeto que se tornou a Lei de PPPs (2004).
Em versão do relatório final do GT de Cidades, ao qual o sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado Estadão/Broadcast teve acesso, o grupo afirma que a delegação da criação de normas de referência à ANA teria causado insegurança jurídica e gerado conflito de interpretação do papel das agências de regulação subnacional. Diz ainda que a regra resultou na não participação social e dos agentes de políticas públicas na formulação das normas.
Fragmentação
Com mais de 80 agências reguladoras espalhadas pelo País, a prestação de serviços de água e esgoto sofre historicamente com a fragmentação de regras regulatórias – que interferem em temas como cobrança tarifária. O cenário, com a antiga lei que possibilitava que estatais fechassem contratos com municípios sem licitação, afugentou o investimento privado no saneamento.
Para tentar dar mais segurança jurídica e solucionar o atraso, simbolizado por quase metade dos brasileiros que ainda vivem sem acesso à rede de esgoto, o marco de 2020 atribuiu à ANA a missão de editar normas de referência para orientar o trabalho dos órgãos que regulam os contratos de água e esgoto.
Caberá ao presidente eleito Lula avaliar se seguirá, ou não, as sugestões do GT. Alterar a competência da ANA demandaria aprovação de lei no Congresso. “Propõe-se ainda a transferência da competência de definir normas e recomendações para a regulação do saneamento básico, atualmente alocadas na Agência Nacional de Água (ANA), para um departamento da SNS”, diz o relatório.
A mudança é extremamente mal vista entre integrantes do mercado e especialistas do setor, que enxergam problemas no entrosamento entre a política pública e a regulação. Engenheiro que já comandou a Sabesp, a ANA e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman aponta que a regulação do setor não pode atender o “governo de plantão”.
“O regulador precisa, no horizonte de tempo, ver vários anos à frente. O tempo total da concessão. Mas aí imagina que o governo avalia que há problema inflacionário e que é necessário reduzir as tarifas. Aí se trabalha num método de cálculo tarifário, uma orientação geral que congele a tarifa, num exemplo mais caricatural. Isso é interesse do governo de plantão”, citou Kelman, que ajudou na elaboração do programa de governo de Simone Tebet (MDB-MS), ex-candidata à Presidência.
Líder de Infraestrutura e mercados regulados na América Latina Sul na consultoria EY, o ex-secretário de Desestatização do governo Bolsonaro Diogo Mac Cord destacou que, desde a criação das agências reguladoras, suas funções têm sido garantir a separação do que é interesse de Estado do que é interesse de governo.
“Isso é de fundamental importância para os investidores. Essa autonomia foi, inclusive, mais recentemente adotada pelo Banco Central, pela instituição de mandatos para seus diretores. É uma prática positiva, que conta muito a favor do Brasil na agenda de segurança jurídica”, disse Mac Cord, um dos principais nomes do governo na articulação e elaboração do marco legal
Marco do saneamento na mira
Sancionado há pouco mais de dois anos, o novo Marco Legal do Saneamento Básico no País pode estar com os dias contados, a depender da influência do grupo de Cidades na transição, que tem entre os integrantes o deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL-SP).
A equipe propôs ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) medidas que reveem o incentivo à participação de empresas privadas no setor, retomam a possibilidade de estatais fecharem contratos sem licitação com municípios e retiram da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) a edição de normas para a regulação do saneamento.
O grupo ainda sugere revisar a legislação para revogar artigos que viabilizam a privatização de empresas estaduais de saneamento, como a Sabesp (SP) e a Corsan (RS). Esse documento, assim como os relatórios de outros grupos técnicos, não foi divulgado pelo governo de transição. Lula pode, ou não, seguir as recomendações.
Diferentemente da revogação dos decretos que regulamentam o novo marco legal, cuja decisão cabe exclusivamente ao futuro presidente, a volta da permissão para que prefeituras possam contratar sem licitação (os chamados contratos de programa) dependeria de uma mudança na lei aprovada pelo Congresso.
Esse tipo de contrato foi o grande responsável pelo predomínio das estatais nas últimas décadas. Como a lei anterior não obrigava os municípios a abrir licitação para contratar os serviços de água e esgoto, o comum era que prefeituras e companhias estaduais fechassem acordos entre si, muitos deles sem estipular metas de cobertura.
A falta de fôlego para essas estatais investirem se apresentou como um problema. Quase metade da população ainda não tem acesso à rede de esgoto. Pelas metas do novo marco, até 2033 as empresas precisam garantir o atendimento de água potável a 99% da população e o de coleta e tratamento de esgoto a 90%.
No relatório, o grupo afirma que a nova lei causou desequilíbrio com o fim dos contratos de programa, porque dessa forma teria “proibido” a cooperação federativa, causando “insegurança jurídica, e obstaculizou a prestação privada”.
“Vamos olhar com carinho essa questão do marco do saneamento”, disse o governador da Bahia, Rui Costa (PT), na última sexta-feira, 9, após ser anunciado como futuro ministro da Casa Civil. Ele apontou que o modelo deverá ser ajustado após “diálogo” com o setor. Costa, que como governador resistiu a vários trechos do marco legal durante a tramitação no Congresso, diz que não houve a “explosão” de investimentos “como se esperava”.