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série ajuda a entender a mente de quem atacou Brasília

série ajuda a entender a mente de quem atacou Brasília

Muito se discutiu a capa da Folha de S.Paulo da última quinta-feira (19 de janeiro de 2022) que retratava o presidente Lula atrás de um vidro estilhaçado. A leitura da imagem tornou-se polêmica porque uns diziam que isso mostrava a fragilidade do presidente, em meio a tentativa de golpe, perpetrado por vândalos contra as instalações do Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Palácio do Planalto.

Outros argumentavam que a resistência do vidro protetor mostrava que a tentativa é real, fonte de preocupação para o governo que se inicia.

Terceiros, entre os quais me incluo, levantavam a hipótese de que tanto os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 quanto a foto na primeira página do jornal foram um ótimo acontecimento, ao menos para nossa vida psíquica, por três motivos:

  1. Produziu uma imagem real e unificada de que o golpe mambembe existe e demanda atenção e medidas de contenção, justificando o julgamento sem anistia pelos desmandos ocorridos até aqui e depois de aqui. Ou seja, ressignifica todo o percurso, até então especulativo de que tínhamos um golpe em curso. Desde quando?
  2. Interrompeu o estado de expectativa no qual as teorias conspiratórias daqueles que vivem em realidade paralela contaminavam todos que especulavam permanentemente sobre a forma e a potência do golpe. Agora sabemos quem são os perseguidores da república, qual é cara dos cúmplices e sua capacidade de articulação.
  3. Introduziu uma convicção profunda de que um certo Brasil se perdeu para sempre. Tivesse ele sido composto por ilusões de unidade e pseudopacificação, por um projeto civilizatório ou de elites regressivas, este Brasil acabou e não voltará mais, diz o resultado dividido da eleição e a sua não-aceitação pelos insurgentes.
lula vidro trincado - Gabriela Biló/Folha - Gabriela Biló/Folha

Imagem que mostra Lula atrás de um vidro trincado foi publicada pelo jornal Folha de S.Paulo

Imagem: Gabriela Biló/Folha

Pensando que a imagem de Lula atrás de um vidro remetia também que doravante ele tinha virado vidraça, e as pedras da imprensa começaram a cair, assisti a série da Apple TV+ chamada “Severance“.

A tradução por “Ruptura” não me parece muito boa, porque na verdade severance é ao mesmo tempo corte (ainda que não exista um substantivo para o verbo to cut), mas compreendia também a ideia de fragmentação, divisão e perda.

Reinterpretei então o caráter simultaneamente esquizoide, paranoide e melancólico da imagem de Lula atrás do vidro estilhaçado. Uma imagem que confere realidade simbólica àquilo que poderia ter sido uma alucinação delirante chamada golpe, que dá nome, cara e endereços aos perseguidores paranoicos e que nos faz pensar no Brasil que perdemos, junto com o relógio de Dom João 6º e a tela de Di Cavalcanti, como antes já tínhamos perdido os orixás expulsos do Planalto.

Estava pensando se a imagem do vidro estilhaçado estava mais para “Black Mirror” ou para “Westworld”, quando assisti à série “Ruptura”.

A série tem por premissa uma empresa na qual um grupo de funcionários que, por livre decisão, escolhe criar uma ruptura entre a vida no trabalho e a vida fora do trabalho. Um chip implantado no cérebro bloqueia a conexão entre a memória e a consciência quando se toma o elevador de ingresso na empresa. Ao fim do expediente o chip libera a conexão com o antigo eu, mas sem reter nada do que aconteceu durante o tempo de trabalho.

“Ruptura” radicaliza a divisão subjetiva que se prosperou desde o início da modernidade, dando luz a separação entre vida privada em casa e família e vida pública nas rua e no trabalho, na produção e consumo.

Na verdade, esta divisão é um desdobramento da antiga separação entre o século e o mundo, ou seja, a vida sagrada e a vida comum.

A série é dirigida pelo comediante Ben Stiller (ele dirige os três primeiros e os três últimos episódios, cabendo os três intermediários a Aoife McArdle), o que faz lembrar a afirmação freudiana de que o humor é a melhor estratégia pela qual o Eu consegue ludibriar o supereu —oferecendo para ele uma espécie de duplo ou de cópia de si mesmo—, sendo o supereu a vida de obrigações no trabalho e o Eu o lugar de contradições entre estas obrigações e nossas aspirações de prazer.

Cena da série Ruptura - Divulgação - Divulgação

Adam Scott interpreta Mark na série “Ruptura”

Imagem: Divulgação

O sistema distópico criado pela empresa Lumon exagera nossa experiência atual com o trabalho, povoado pelo que o antropólogo David Graber chamou de bullshit jobs (trabalhos de merda), ou seja, não só subempregos, precarizados, mal pagos e intermitentes, mas também posições de alto nível decisional, grandes salários, reconhecimento social, mas, mesmo assim, vivido como pouco significativo, empobrecedor e irrelevante.

Mark, Helly, Dylan e Irving são quatro funcionários, chip-implantados, que passam o dia remexendo números na tela do computador. Tudo se passa de forma aparentemente aleatória e sem sentido, ainda que a operação se relacione misteriosamente com afetos. Cada um deles vive sua cisão de uma maneira um pouco diferente:

  • Dylan é o “modelo básico” que vive o trabalho, aceitando as regras do jogo, dividido entre sacrifício e prazer, com alguns momentos de intranquilidade onde o lado A da vida briga com o lado B. Como Dr. Jekyll e Mr. Hyde –ou Dylan Thomas e Bob Dylan–, duas caras e duas vidas lutando no mesmo corpo.
    Sonha em ser o funcionário do mês, com a festa do waffle, com o baile-prêmio onde mulheres mascaradas vão fazer a dança ritual gozando com o super chefe-master-pai-presidente Kier Eagan.
    Ele representa o sentimento de uma vida medíocre, apequenada, que aceita migalhas de prazer e segurança enquanto sonha participar de uma epopeia gloriosa e heroica.
  • Irving, o imortal Christopher Walken, é o ex-militar homossexual que vive a cisão como fragmentação. Pinta toda a noite o mesmo quadro, escuro e estilhaçado, representando a porta do elevador pelo qual as pessoas entram e saem da empresa.
    A cisão esquizoide começa a degelar quando ele encontra Burt, o restaurador que repinta quadros da história da arte ocidental, introduzindo Kier Eagan como protagonista, nos Velázquez, Vermeer ou Rafael.
    A afinidade estética se combina com a sexual de tal maneira que começa a emergir um vaso comunicante entre a vida in e a vida out.
  • Helly representa uma espécie de rebeldia contra o sistema. Tenta atrapalhar o funcionamento, se angustia, tenta se demitir, depois se matar sem que se saiba muito bem o que ela pretende com tudo isso.
    Descobrimos que Helly é filha do presidente da Lumon, uma aparente alusão a Niklas Luhmann, teórico da comunicação para quem existem três sistemas –interação, organização e sociedade–, que formam uma unidade a partir da linguagem.
  • Mark representa o enigma mais radical para nossa maneira alienada de estar no trabalho atualmente, ou seja: por que alguém escolheria, em sã consciência e liberdade, esta forma de vida para si?
    A resposta está na história de Mark. Tendo perdido a esposa, ele prefere esquecer em vez de uma vida vazia e dolorosa, feita das lembranças corrosivas de tudo que poderia ter sido e não será. Diante da dor e do vazio parece muito justo que alguém escolha esquecer e dormir.
    Aqui encontramos um vaso comunicante inusitado. Sua mulher aparece como terapeuta, dentro da empresa, transmitindo mensagens pacificantes e edulcoradas, mas que, em vez disso o inquietam e perturbam.

Do outro lado, o lado da empresa vemos Milchick, o guarda fiel cumpridor de ordens, junto com Harmony Cobel, a sensacional Patricia Arquette, funcionária amargurada, ressentida e mal-reconhecida, tentando controlar estes pequenos pontos de conexão entre a vida dentro e a vida fora da corporação.

As coisas começam a mudar de figura quando um livro de autoajuda —”Você É Quem Você É”— é achado por Dylan e começa a inspirar a revolução dos “rupturados”.

Frases banais —como “o chefe é dono do relógio, mas você é dono do seu tempo” ou “de punhos fechados ninguém pode bater em você”— são recebidas como verdadeiros motes inspiradores da revolta.

O plano para sair deste espaço distópico é formado por corredores, como os antigos jogos de Dungeons & Dragons

A angústia que transpira na série deve em parte ao fato de nos ser apresentado um futuro que é simplesmente igual ao passado.

A estética da empresa lembra aqueles escritórios dos anos 1980, com seus corredores infinitos, onde só há cinza, branco e tapetes verdes, mas agora eles se tornaram uma versão creepypasta, ou seja, espaços liminares, com atmosfera misteriosa e desamparada de um lugar abandonado, depois de estar cheio de pessoas.

Lembremos que a suposição da existência de tais espaços foi mapeada como uma constante nas teorias conspiratórias do tipo de QAnon. Por exemplo, existe embaixo da terra, no porão de pizzarias mundo afora, ali, em meio ao cheiro de carpete molhado, onde crianças são exploradas sexualmente, para extração de energia vital, por parte daqueles que dominam o planeta.

Assim também a Lumon tem corredores imensos, salas surrealistas, com carneiros, paisagens exuberantes, cenários sadomasoquistas, santuários dedicados ao criador.

Voltemos agora a nossa versão mambembe da quase “ruptura” nacional representada pelo vidro estilhaçado, fragmentado e partido que divide o Brasil.

Vidro que ao mesmo tempo protege nossas instituições, o que sobrou das regras do jogo, e signo visual do perigo pelo qual passamos.

A confusão em que nos metemos, assim como em “Ruptura”, é composto pela constelação mortal de diferentes divisões subjetivas:

  • Super-heróis envoltos em bandeiras orando para pneus em chamas
  • Revoltados erráticos contra o sistema
  • Desmemória radical e falta de consciência comunicante entre o dentro e o fora do sistema
  • Cães pastores de dentro do sistema aproveitando para colocar seus planos mirabolantes em ação, autorizados por teorias conspiratórias, fake news, velharias dos anos 1980, videogame e autoajuda contemporânea.

Isso tudo misturando:

  • Banalidade do mal
  • Esquizoidia “do bem”
  • Paranoia orquestrada e instrumental

Tudo isso junto com perda melancólica do relógio real da história e de um Brasil que um dia fomos.

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