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Regulação da internet entrou na mira dos Três Poderes

Regulação da internet entrou na mira dos Três Poderes

A ideia de que a internet iria melhorar a democracia e o exercício das liberdades é hoje uma “ilusão perdida”, pois o que está em jogo “é o conceito de cidadania digital e de controle do espaço e do discurso público”, tomados por empresas que “controlam as ideologias e ainda ganham dinheiro com isso”. Foi a partir dessa concepção que o ministro da Justiça, Flávio Dino, defendeu que o governo regule as redes sociais, alterando o Marco Civil da Internet, em evento realizado nessa segunda-feira (13).

O evento, organizado pelo IDP, pela FGV Conhecimento e pela Rede Globo, reuniu líderes dos Três Poderes para deixar claro que uma nova regulação sobre a internet no Brasil está por vir.

Os caminhos que levam até essa mudança são variados e passam por iniciativas do:

  • Poder Executivo, que se mobiliza para apresentar uma proposta sobre o tema em especial depois dos atos violentos de 8 de janeiro
  • Poder Legislativo, com foco na tramitação do PL 2630/2020
  • Poder Judiciário, com o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet se aproximando no STF

Se uma parte importante dos atores políticos e lideranças dos três poderes concordam que uma mudança é necessária, o que precisa ser revisto e o modo de realizar essa transformação ainda são questões em aberto.

Internet não é terra sem lei

Uma pedra de toque sempre presente em debates sobre regulação da rede é que a internet não pode ser uma terra sem lei. Seguida de perto de outro adágio que afirma que tudo aquilo que é crime fora da internet também deve ser crime quando cometido dentro dela.

Ninguém duvida disso.

As discordâncias começam quando se debate quais leis devem existir e quais comportamentos ela deve mirar.

Flávio Dino defendeu que as redes sociais precisam ser reguladas, já que não existe espaço da vida humana em que não exista a presença de leis aplicáveis.

Segundo o ministro, não há esfera de privacidade desregulada.

“Mesmo quando se encontram no lar os cônjuges…”

E fez pausa para enfatizar:

“Viram que eu pronunciei certinho?”, em referência ao ex-ministro Sergio Moro, para risadas da plateia.

“…A relação é sempre a três pois existem eles e o ordenamento jurídico.”

Fazem parte do ordenamento jurídico:

  • Código Civil (de 2002)
  • Código de Defesa do Consumidor (de 1990)
  • Código Penal (de 1940)
  • A Lei que diz que infrações ambientais são mais graves se cometidas nos domingos e feriados (Lei nº 9605/1998, art. 15)
  • O próprio o Marco Civil da Internet (de 2014)

Existem assim leis que tratam de temas que nada têm a ver com a rede (ainda não estamos debatendo a sério se derrubar árvore no metaverso é um crime ambiental), leis que foram criadas antes do surgimento da internet e que se aplicam ao que acontece nela, e finalmente leis construídas especialmente para regular o que acontece online (como o Marco Civil).

Então a internet no Brasil não é uma terra sem leis (e talvez nem tudo que seja crime fora da rede precise também ser crime dentro dela, mas isso fica pra depois).

Se temos leis aplicáveis sobre a internet porque essa movimentação para fazer uma nova regulação ou mudar a que está aí?

8 de janeiro mudou tudo

Existe uma percepção compartilhada entre os diferentes atores presentes ao evento de que a internet não é mais a mesma e que algo precisa ser feito para consertar o que está quebrado.

O que mais se ouviu foi que o Marco Civil não daria mais conta da dinâmica típica das redes sociais, que teriam se transformado em ferramentas para disseminar desinformação e nutrir radicalismos que levaram ao 8 de janeiro.

Uma das respostas ao problema vem do Congresso.

O PL nº 2630, apelidado de “PL das Fake news”, tramitou durante a pandemia e chegou a ser aprovado no Senado. Havia certa pressa em aprovar o texto na Câmara antes das eleições temendo que as redes sociais se transformassem no campo de batalha que definiria o pleito eleitoral de 2022.

A iniciativa bateu na trave (até porque saiu incorporando temas tão diversos quanto imunidade de político nas redes sociais e remuneração de veículos de imprensa).

Esse e outros motivos fizeram com que coubesse ao TSE fazer o trabalho de procurar conter a desinformação nas redes, com protagonismo do ministro Alexandre de Moraes.

(Moraes, por sinal, que estava no evento, defendeu também uma nova regulação.)

Agora, no início do ano legislativo, é esperado que o PL nº 2630 volte a andar, e que ele receba os insumos colhidos pela experiência do TSE, entre em diálogo com as iniciativas do Poder Executivo (que ensaiou a edição de uma medida provisória, mas voltou atrás) e faça as modificações que possam adequar o texto ao novo momento.

Jornalistas e parlamentares calados por um clique

Dentre os pontos de discordância com relação ao projeto de lei está o dispositivo que garante imunidade parlamentar nas redes sociais.

O tema é especialmente delicado porque muitos políticos se transformaram em atores centrais em campanhas de desinformação. Dessa maneira, ter na lei reconhecida que essa imunidade se aplica às redes sociais tornaria mais difícil que as plataformas digitais agissem para moderar conteúdo de autoridades.

O presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, que também marcou presença no evento, disse que:

“As redes sociais viraram veículos e obstáculos aos direitos constitucionais”.

Em fala direcionada às iniciativas de moderação de conteúdo nas redes, afirmou que não é possível que jornalistas e parlamentares sejam calados por um clique.

Essa frase, que poderia ter passado desapercebida em um discurso que pregou o equilíbrio na regulação do tema, soou para muitos dos presentes como um aceno à bancada bolsonarista, que vive às voltas com remoção de conteúdos e bloqueio de contas, ao mesmo tempo que procurou puxar para o debate a classe jornalística.

Acontece que, em regra, os jornalistas que mais enfrentam problemas com moderação de conteúdo são aqueles que operam (ou operavam) em veículos que constantemente figuram nos rankings da desinformação.

Vale ficar de olho no desenvolvimento desse tema para que o projeto de lei que procura combater as fake news não termine sendo o viabilizador daquilo que se procura evitar.

Plataformas digitais responsabilizadas como jornais e TVs

A disputa entre veículos de comunicação social e plataformas digitais se mostra mais claramente no debate sobre o regime de responsabilização.

Deveriam as redes sociais serem responsabilizadas por aquilo que se publica nelas assim como emissoras de televisão ou empresas jornalísticas?

Esse cabo de guerra aparece nos debates sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e na discussão sobre o regime jurídico aplicável às redes sociais.

O ministro Alexandre de Moraes tem sido bastante vocal sobre a necessidade das plataformas digitais serem responsabilizadas como meios de comunicação social.

Segundo o ministro:

“As big techs não podem ser consideradas apenas empresas de tecnologia. Elas são imprensa, comunicação e publicidade (…) Se lucram com isso, devem ser equiparadas, na responsabilidade, com empresas de comunicação e de publicidade.”

Esse debate já chegou, de certa forma, ao STF quando o ministro Nunes Marques, ao analisar o caso da cassação da candidatura do deputado Fernando Francischini (União Brasil-PR), enfatizou que não se pode considerar a internet como uma evolução natural do rádio e da TV, pois existiriam diferenças fundamentais na forma pela qual se dá a comunicação nas redes.

Nunes Marques ressaltou que, enquanto na TV a empresa responsável escolhe o que vai passar e apenas esse conteúdo é transmitido, nas redes sociais todos os usuários podem falar ao mesmo tempo. Assim, não seria possível aplicar às redes o mesmo tratamento jurídico das empresas que ativamente selecionam um conteúdo a ser veiculado em sua programação.

Foco no artigo 19 do Marco Civil

Ainda no STF, o julgamento de uma ação que procura declarar a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet promete aquecer a discussão sobre a melhor forma de regular a rede.

Esse artigo diz que os provedores de aplicações apenas devem ser responsabilizados por conteúdos de terceiros caso não cumpram com uma ordem judicial determinando a remoção desse conteúdo.

A ideia do dispositivo era resguardar o papel do Judiciário como instância definidora da ilicitude de conteúdos, ao mesmo tempo que:

  • (i) existem exceções na lei para conteúdos envolvendo exposição de conteúdos adultos de maneira não consentida e para violações aos direitos autorais; e
  • (ii) não se impede que as plataformas removam publicações que vão contra os seus termos de uso.

O ministro Gilmar Mendes, em sua fala no evento, defendeu que esse modelo precisa ser revisto, dando lugar a um regime em que as plataformas são responsabilizadas caso não cumpram com deveres procedimentais na análise de conteúdo.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, defendeu que esse artigo seja mudado para permitir que plataformas sejam responsabilizadas caso não tirem do ar conteúdos que envolvam menores, violações aos direitos humanos e ataques ao Estado Democrático de Direito, por exemplo.

Faremos outra coluna detalhando o debate, mas parece claro que o ponto central nessa discussão é quem define o que é violação aos direitos humanos e discurso antidemocrático, qual o processo de avaliação de um conteúdo e como seriam as empresas responsabilizadas por avaliações equivocadas.

Também presente no evento, a jornalista Patrícia Campos Mello perguntou ao ministro se a publicação de uma senhorinha segurando uma placa escrita “artigo 142 da Constituição Federal” deveria então ser removida automaticamente pelas plataformas, sob pena de serem responsabilizadas.

A jornalista também questionou a ausência de qualquer integrante da sociedade civil no debate.

Aqui vai uma notinha pessoal.

Não me parece que para aperfeiçoar a regulação da internet no Brasil seja preciso declarar inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil ou equiparar redes sociais ao rádio e à TV como um todo.

Essa equiparação já acontece na jurisprudência do TSE para punir candidatos que atacam a integridade das eleições e espalham desinformação pelos meios de comunicação e pela internet.

Manter essa simetria apenas no contexto eleitoral parece ser a medida mais acertada porque permite sancionar ilicitudes sem reinventar a roda.

No caso do artigo 19, nada impede que ele conviva com a imposição de regras procedimentais que possam tornar a moderação de conteúdo mais transparente e informativa.

Regimes excepcionais para conteúdos que se entendam de ilicitude mais objetiva, ou mesmo de interesse exclusivamente privado, também podem ser desenhados (e essa gradação já se encontra no próprio Marco Civil).

Existem dezenas de botões que podem ser apertados para melhorar a regulação da internet no Brasil, incluindo o aperfeiçoamento de práticas de transparência por parte das empresas, como a publicação de relatórios e o design de ferramentas, além da instituição de uma efetiva entidade de supervisão e controle.

Implodir o regime de responsabilidade civil de provedores talvez não seja a panaceia para os males que nos afligem, mas o despertar de tantos outros, piorando a conversa sobre o que fica e o que cai, quem pode falar e quem está suspenso nas redes.

A internet está sempre mudando. Entender quais foram essas transformações e como elas demandam uma revisão da legislação existente ou a produção de novas leis é o desafio que definitivamente entrou na agenda política.

Suas reviravoltas e discussões vão ocupar um grande espaço em 2023, fazendo todos os envolvidos ganhar alguns cabelos brancos. Sorte dos carecas, como parece ter lembrado o presidente da FGV, Carlos Ivan Simonsen, ao se dirigir ao ministro Alexandre de Moraes e dizer:

“Ainda bem que o ministro já perdeu os cabelos faz muito tempo.”

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