O economista Affonso Celso Pastore é um duro crítico à proposta de ampliar gastos e criar exceções fora do teto, como propõe o governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por meio da PEC (proposta de emenda à Constituição) da Transição.
“O Orçamento do Brasil foi capturado por vários grupos. O grupo da Zona Franca de Manaus e o pessoal do Simples Nacional estão entre eles. O orçamento secreto é uma captura”, afirma. “Se você agir sobre as capturas, terá um enorme espaço fiscal para combater a pobreza.”
Na avaliação de Pastore, a opção do novo governo pelo aumento de despesas é baseada numa visão de mundo e da política.
“O PT acredita que gasto público produz crescimento econômico. Não é que temos uma visão econômica distorcida. Temos uma visão ideológica.”
O governo tem dito que precisa da aprovação da PEC para garantir ações na área social, e o sr. tem se posicionado contra o valor e o prazo apresentados. Pode explicar as razões? Primeiro, vamos distinguir responsabilidade fiscal e a responsabilidade social. Elas não são incompatíveis de jeito nenhum.
Um país com renda per capita baixa como o Brasil e com um nível de pobreza absoluta muito grande, tem que ter uma atitude mais positiva em relação ao combate à pobreza. Você só resolve esse problema com crescimento econômico, geração de oportunidades para as pessoas excluídas, ensino para crianças na baixa renda. Mas isso é uma atuação de longo prazo. No curto prazo, é preciso transferências de renda.
Bom, mas o que que vem acontecendo nessa discussão agora?
Antes do governo Bolsonaro, pagava-se R$ 190 por família, em média, e o Bolsa Família era de R$ 40 bilhões ao ano, mais ou menos. Veio a pandemia, e o valor foi multiplicado. O benefício foi para R$ 400. Depois, já com um olho na popularidade e na eleição, foi aprovado um pagamento adicional de R$ 200, totalizando R$ 600, um número significativamente superior ao inicial.
Quando você olha para estrutura da despesa pública, vai ver que a Previdência, que já teve uma reforma, e o pessoal administrativo, que não vai ter reforma tão cedo, formam um pedaço muito grande dos gastos. Tem também educação, saúde. Enfim, a rigidez orçamentária é grande.
No entanto, existem outros gastos nos quais é possível catar recursos. No Imposto de Renda da Pessoa Física, tem mais R$ 45,2 bilhões para cobrir rendimentos não tributáveis e outros R$ 30 bilhões de deduções previstos no Orçamento de 2023.
Dentro de gastos tributários tem o Simples Nacional. São R$ 88,5 bilhões por ano, que é o dobro de um Bolsa Família antigo. Tem uma Zona Franca de Manaus, que está gastando mais do que o Bolsa Família antigo, R$ 55,2 bilhões. Tem mais R$ 54 bilhões para agricultura e agroindústria. Mas eu não vejo o Lula cortando essas coisas.
O sr. está dizendo que existem alternativas dentro da própria estrutura de gastos? O Orçamento do Brasil foi capturado por vários grupos. O grupo da Zona Franca de Manaus e o pessoal do Simples Nacional estão entre eles. O orçamento secreto é uma captura. Se você agir sobre as capturas, terá um enorme espaço fiscal para combater a pobreza.
Lula quer cumprir a promessa de campanha de manter os R$ 600 e dar mais R$ 150 por criança.
Já estão incluídos no Orçamento os R$ 400. São necessários R$ 52 bilhões para completar mais R$ 200 e cerca de outros R$ 15 bilhões para dar os R$ 150 por criança. Isso soma quase R$ 70 bilhões, esse é o extra teto para cumprir essa promessa.
Mas o Orçamento de 2023 enviado pelo governo Bolsonaro tem vários outros buracos, não? É evidente que tem outros defeitos no Orçamento. Um deles é a correção. O teto de 2023 é corrigido pela inflação de 2022. No Orçamento está previsto uma inflação de 7,2%. A inflação vai dar 6%.
O Marcos Mendes [colunista da Folha], um sujeito muito responsável, fez várias análises dizendo que com R$ 110 bilhões se resolve o problema e mantém o teto.
A negociação da PEC sinalizou que haverá novo arcabouço fiscal no futuro, mas sem explicar qual. Como sr. viu isso? Inverteram a ordem quando começaram a discussão pelo gasto fora do teto —e a ordem dos fatores aqui altera o resultado. A gente fica batendo na tecla de respeitar a regra, porque é sempre melhor ter uma regra do que tomar decisões discricionárias.
O Brasil tem uma taxa de juros real maior do que a taxa de crescimento econômico sustentável. A dívida pública é a maior entre os países emergentes. Quando essa dívida pública sobe, sobem também os prêmios de riscos.
A regra fiscal, qualquer que ela seja, precisa levar à geração de superávits primários suficientemente grandes para cobrir o crescimento da dívida. Porém, estamos aqui falando tirar gastos do teto, quando deveríamos estar nos concentrando numa discussão de alternativas que levem a superávits.
O governo Bolsonaro furou o teto e se orgulha de dizer que fez superávit primário. Como o sr. vê isso? Se você olha o superávit do governo Bolsonaro é uma beleza. A relação da dívida/PIB caiu para os 75% que estavam em 2019. Mas vamos dar um passo atrás.
A filosofia do que deve ser feito está na Lei de Responsabilidade Fiscal. Você não pode criar despesa permanente em cima de receita transitória. O que fez Guedes [ministro da Economia]? Fez receitas transitórias e gerou aumentos transitórios de despesas. Com o Auxílio Brasil foi isso.
Sim. Elevou o valor do auxílio durante a campanha, mas não orçou para 2023. Podemos ser críticos a Guedes, mas nisso ele foi coerente.
Foi eleitoreiro, não? Sim. Foi eleitoreiro, e também deixou fora do Orçamento de 2023. Agora vem cá. Tem a questão do superávit.
O superávit foi ocasional, gerado por surpresas inflacionárias que levaram à alta na receita tributária. Esse fenômeno aconteceu no mundo inteiro. Vou dar um exemplo. O preço do petróleo estava subindo e, depois, com a pandemia, caiu. Em 2021, o barril estava abaixo de US$ 80. Veio a Guerra da Ucrânia, e ele ficou entre US$ 100 e US$ 120. Nesse meio tempo, o real depreciou mais do que outras moedas emergentes.
Os estados coletam ICMS sobre refino de petróleo avaliado a este preço e com esta taxa de câmbio [maiores]. Isso levou a uma subida temporário de receita e superávit nos estados. Agora, vamos ter uma desaceleração da economia mundial. O preço do petróleo já caiu para baixo do US$ 80. Tem queda no preço das commodities. Vamos ter queda na receita.
O documento Monitor Fiscal, do FMI, faz uma comparação de como teria evoluído a dívida de vários países de 2020 a 2022 se fosse computado apenas o efeito da surpresa inflacionária, não o aumento de despesa. Essa surpresa inflacionária teria reduzido a dívida de muitos países de maneira substancial. Para o Brasil, a redução da dívida teria sido de 16 pontos percentuais. Ela caiu 10 pontos. Significa que boa parte da surpresa inflacionária sobre a receita foi usada para aumentar gastos.
A fotografia da situação fiscal de 2022 é distorcida. A lente não corrige o efeito da surpresa inflacionária, que agora acabou. E, sem ela, estaríamos em déficit neste ano. O superávit primário de 1% registrado em outubro viraria já um déficit.
Qualquer extrateto daqui para frente, por mais contido, vai elevar a relação dívida/PIB. Essa PEC faz ela subir mais. Bom, a gente precisa daqui para frente remanejar gastos. E não temos uma equipe econômica discutindo isso.
Diante de tudo isso, o que sr. acredita que o PT sinaliza neste primeiro momento? O PT não acredita que taxa de juros baixa produz crescimento econômico. O PT acredita que gasto público produz crescimento. Vou citar uma petista que chegou à Presidência da República, Dilma: gasto é vida. Não é que temos uma visão econômica distorcida. Temos uma visão ideológica.
Em certo sentido, é isso que está sendo discutido com essa PEC que aumenta gastos. Mas com esse gasto a mais, sobe o risco, a taxa de juros também sobe, e a taxa de crescimento cai.
Não estou ameaçando ninguém. Não é o mercado reagindo de uma maneira irracional. É assim que funciona.
Mas deixa eu te dizer o seguinte: se o país cresce porque a taxa de juros é baixa, e o setor privado aloca recursos, o político não se beneficia, pois não pode ser indicado com responsável pelo crescimento. Mas se o crescimento vier do aumento do gasto público, o político tem voto e apoio.
Temos que ver o que está por trás da motivação de aumentar o gasto. Por trás disso está mostrar que o PT no governo é capaz de fazer mais desenvolvimento econômico que outros países. Não vai funcionar. Expansão fiscal produz aumento de prêmio de risco, quer o PT goste do mercado ou não.
RAIO X
Affonso Celso Pastore, 83
Economista e doutor na mesma área pela USP (Universidade de São Paulo), onde também foi professor. Integrou a equipe do Ministério da Fazenda na gestão de Delfim Netto e presidiu o Banco Central no governo do general João Figueiredo, último presidente do regime militar. Associado ao CDPP (Centro de Debates e Políticas Públicas), é autor de vários livros sobre câmbio e inflação e atua como consultor pela AC Pastore & Associados