Por Angus Berwick e Tom Wilson
DORDRECHT, Holanda (Reuters) – Nos oito anos em que dirigiu um mercado online de venda de imagens de abuso sexual infantil, Michael Mohammad faturou o equivalente a mais de 100 mil euros. Em seu julgamento em maio, enquanto algumas de suas vítimas ouviam, ele disse ao juiz: “Foi puramente negócio.”
O tribunal holandês sentenciou Mohammad a 10 anos de prisão depois de condená-lo por uma série de crimes. Eles incluíram a distribuição de milhares de fotos e vídeos de abuso infantil, estupro e bestialidade por meio de seu site, Dark Scandals. Ele forçou dezenas de meninas com menos de 16 a se penetrarem para que pudesse gravar imagens e estuprou duas enquanto filmava.
Um novo tipo de empresa possibilitou a existência da Dark Scandals: plataformas de criptomoedas. Os clientes de Mohammad usaram essas plataformas para comprar ativos digitais com dólares e euros e gastá-los com relativo anonimato. Esses ativos eram a moeda de troca de Mohammad. Ao todo, mostram os dados de transações analisados pela Reuters, os clientes da Dark Scandals usaram quase 50 plataformas diferentes de criptomoedas, incluindo as líderes do setor: Coinbase e Binance.
A Coinbase disse à Reuters que a corretora “é o lugar errado para ir se você está tentando escapar impune de um crime. Temos uma política de tolerância zero para qualquer pessoa envolvida em atividades ilícitas, como material de abuso sexual infantil”.
A Binance disse que cooperou com a aplicação da lei para ajudar a derrubar a Dark Scandals.
Aos 26 anos, Mohammad se voltou ao bitcoin em 2013, depois que a PayPal bloqueou seu recém lançado site de acessar a rede de pagamentos.
Com o slogan “adoramos o anonimato”, Mohammad usou criptomoedas para transformar o site em um dos mercados mais conhecidos de imagens de abuso sexual.
Mohammad cobrava dos clientes criptomoedas no valor de até 200 euros para terem acesso a “pacotes” compostos por centenas de vídeos. Ele também negociou o acesso à sua coleção por novos vídeos, exigindo que o material negociado retratasse atos que seu site depois poderia dizer se tratarem de atos “forçados”. Ele recebeu 115 mil euros em criptomoedas de seus clientes, concluiu o tribunal, juntando-se ao crescente número de criminosos que facilitam e lucram com abuso sexual.
Mohammad foi preso em 2020 após uma investigação internacional envolvendo autoridades norte-americanas e holandesas. As autoridades conseguiram rastrear os fluxos de criptomoedas para o site no blockchain, a infraestrutura sobre a qual as criptomoedas são baseadas. Os policiais conseguiram dados sobre datas, valores e endereços de carteira digital das transações dos clientes.
Entretanto, os usuários do Dark Scandals ainda podiam transferir dinheiro para o site se as corretoras de moedas digitais não exigissem o fornecimento de dados pessoais. Muitas das contas dos clientes de Mohammad foram abertas em oito corretoras diferentes sem detalhes pessoais ou usando dados falsificados, disse sub-promotor dos EUA em tribunal.
“Esse anonimato promoveu o sucesso dos sites Dark Scandals”, escreveu o promotor assistente dos Estados Unidos, Zia Faruqui, que ajudou a supervisionar a investigação que levou à captura de Mohammad na Holanda. Faruqui não identificou as corretoras.
Em email à Reuters, o advogado de Mohammad disse que ele foi condenado indevidamente e que vai apelar da sentença de 10 anos de prisão proferida em junho.
O Departamento de Justiça dos EUA, em relatório de setembro, afirmou que muitas corretoras de criptomoedas ainda fazem “pouco ou nenhum esforço” para cumprirem regras de conhecimento dos próprios clientes. A Europol, a força policial da União Europeia, alertou em janeiro que corretoras de moedas digitais não reguladas são se tornaram a “opção de pagamento” ara criminosos que atuam online, incluindo os que vendem pornografia infantil.
A Coinbase permitiu que os usuários transferissem criptomoedas entre carteiras digitais sem precisarem apresentar identificação por pelo menos dois anos após seu lançamento em 2012, de acordo com uma apresentação para investidores em 2014. A empresa agora exige que todos os clientes verifiquem suas identidades antes de abrirem contas. Na Binance, lançada em 2017, os clientes podiam abrir contas com apenas um email até meados de 2021.
Os valores envolvidos na compra e venda de abuso sexual permanecem pequenos em comparação com outras atividades criminosas, como o tráfico de drogas. Mas os números estão aumentando. Enquanto no passado os abusadores normalmente negociavam imagens de pedofilia entre si em pequenas comunidades, a darknet se tornou um terreno fértil para sites como Dark Scandals, que cobram em criptomoedas, com danos de longo alcance.
A empresa de pesquisa do mercado de criptomoedas Chainalysis, usada por agências do governo norte-americano para rastrear fluxos ilegais, estima que a receita anual de criptomoedas dos sites de pornografia infantil saltou de cerca de 250 mil dólares em 2017 para quase 1 milhão de dólares em 2020.
A Reuters avaliou os dados da Chainalysis relacionados a transferências feitas por carteiras vinculadas à Dark Scandals. Os dados mostram que os clientes do site usaram 47 corretoras, das quais as três mais populares foram Coinbase, a finlandesa LocalBitcoins e a Binance. Criptomoedas no valor total de 22 mil dólares foram transacionadas pela Coinbase e LocalBitcoins entre 2013 e 2019. Algumas negociações mudaram para a Binance e para outra corretora chamada ShapeShift, à medida que outras plataformas reforçavam as verificações de identidade dos clientes. A Binance e a ShapeShift juntas processaram cerca de 3.400 dólares até o fechamento do Dark Scandals em 2020, de acordo com os dados.
As quantias de dinheiro envolvidas não captam a gravidade do dano causado, de acordo com a Internet Watch Foundation (IWF), uma entidade britânica que atua contra pedofilia e coleta dados em todo o mundo.
A IWF diz que o número anual de páginas da web que confirmou conter tais imagens aumentou mais de quatro vezes em relação a 2016, para mais de 250 mil no ano passado. Durante o mesmo período, a organização descobriu que o número de sites comerciais que vendem imagens de abuso sexual por meio de criptomoedas explodiu de apenas 41 para 1.014. Esses sites geralmente incluem links para os usuários pagarem por meio de corretoras de criptomoedas, disse a IWF à Reuters, recusando-se a nomear as empresas.
“Para aquelas pessoas que procuram ganhar dinheiro com abuso sexual infantil, os ativos digitais reduziram a barreira”, disse Dan Sexton, diretor de tecnologia da IWF.
O vice-presidente de inteligência global da Coinbase, John Kothanek, disse à Reuters que a corretora trabalha em estreita colaboração com a aplicação da lei em casos de abuso infantil, alerta as autoridades sobre possíveis atividades ilícitas e encerra contas. A Coinbase tem “equipes de investigação e conformidade dedicadas 24 horas por dia, acesso a ferramentas sofisticadas de análise de blockchain e um processo de primeira classe para identificar criminosos”, disse ele em comunicado, acrescentando que criptomoedas são mais fáceis de rastrear do que o dinheiro tradicional.
O chefe global de inteligência e investigações da Binance, Tigran Gambaryan, é um ex-agente da Receita Federal dos Estados Unidos que esteve envolvido no caso Dark Scandals. Ele disse que a Binance e outras corretoras forneceram registros para a equipe de investigação. “Se não fosse pelas criptomoedas e pela cooperação fornecida pela Binance, o indivíduo por trás do site não teria sido identificado”, disse Gambaryan. LocalBitcoins e ShapeShift não responderam aos pedidos de comentário.
“PEÇAS DO QUEBRA-CABEÇA”
No início de 2018, agentes da Receita Federal e do Departamento de Segurança Interna dos EUA estavam rastreando pagamentos em criptomoedas feitos para outro site de pornografia infantil chamado Welcome To Video. O proprietário, um homem sul-coreano, foi preso por 18 meses por um tribunal de Seul por violar leis de proteção à infância e depois condenado a mais dois anos por ocultar as receitas do site das autoridades.
Os investigadores descobriram que um dos clientes do Welcome To Video havia enviado criptomoedas para uma carteira digital vinculada a um site darknet desconhecido para eles: Dark Scandals. Chris Janczewski, então agente especial da unidade de crimes eletrônicos da Receita Federal dos EUA (IRS), ficou chocado ao ver que o Dark Scandals estava vendendo vídeos de estupros reais.
Em fevereiro daquele ano, policiais disfarçados fizeram um pagamento no valor de 25 dólares em bitcoin para uma das carteiras do Dark Scandals e receberam um link para download por email. O conteúdo que eles baixaram incluía dois vídeos retratando menores sendo abusados sexualmente, de acordo com a acusação dos EUA.
As autoridades então localizaram e acessaram a conta de email de Mohammad, que continha mensagens sobre pagamentos aos provedores de serviços do site. Esses provedores foram pagos usando uma conta financeira em nome dele, segundo a acusação.
Os investigadores rastrearam os pagamentos feitos para o Dark Scandals por mais de 300 contas em oito corretoras não identificadas, disse o promotor dos EUA, Faruqui, em um pedido posterior para recuperar os fundos dessas contas. Muitos clientes usaram as contas, abertas sem documentos ou com detalhes falsos entre 2013 e 2020, apenas para pagar Mohammad, escreveu ele.
Janczewski, o ex-agente da IRS, disse que as plataformas cooperaram na entrega de qualquer informação que tivessem. Um porta-voz da Coinbase disse que a corretora trabalhou com as autoridades dos Estados Unidos no caso, relatando cerca de 300 usuários e fechando suas contas. A Binance também disse que cooperou. Gambaryan, seu chefe de investigações, acrescentou que “o blockchain fornece transparência incomparável sobre fluxos ilícitos de dinheiro”.
Depois que os norte-americanos alertaram as autoridades holandesas sobre os crimes, uma unidade policial em Haia iniciou uma investigação. Enquanto a polícia monitorava Mohammad, ele continuou a ganhar dinheiro: em 8 de fevereiro de 2020, um cliente usou a Binance para enviar a ele 200 dólares em bitcoin, mostram os dados da blockchain.
Um mês depois, a polícia invadiu sua casa em Barendrecht e o prendeu, apreendendo seus computadores, discos rígidos e celular. Em um dos drives, Mohammad armazenava 50 vídeos que gravaram seu bate-papo e videochamadas com várias dezenas de garotas holandesas no Snapchat, WhatsApp e Instagram, segundo o tribunal.
“Você destruiu minha vida e arruinou tudo de bonito que eu via nela”, testemunhou uma garota abusada por Mohammad aos 14 anos. O depoimento dela foi lido por sua advogada. A vítima tem hoje 18 anos. “Eu nunca vou te perdoar pelo o que você fez.”
Jacqueline Beauchere, chefe global de segurança da Snap, proprietária do app de comunicação Snapchat, disse que a empresa trabalha com policiais, especialistas e parceiros do setor para combater o abuso sexual de crianças.
“Se detectarmos ou tomarmos conhecimento de qualquer conteúdo sexual que explore menores, nós o removemos imediatamente, bloqueamos a conta e denunciamos o infrator às autoridades”, disse ela. A Meta, dona do WhatsApp e do Instagram, direcionou à Reuters uma publicação detalhando suas políticas de proteção de adolescentes contra danos online.
“O OUTRO LADO”
Mohammad disse ao tribunal que montou o Dark Scandals porque não acreditava que a venda de vídeos de abusos sexuais fosse ilegal. Ele considerou uma “área cinzenta” e uma “oportunidade de ganhar dinheiro”. Ele negou as acusações de estupro, alegando que as evidências em vídeo e áudio não o identificaram.
As autoridades policiais e pesquisadores disseram à Reuters que as trocas de criptomoedas continuam sendo uma ferramenta de pagamento vital para criminosos. A IWF recebeu mais relatórios no ano passado de sites de imagens de pornografia infantil que cobram criptomoedas do que em qualquer ano anterior. Embora a maioria das principais corretoras agora ajude proativamente as autoridades a rastrear suspeitos, Sexton, da IWF, disse que os criminosos estão sempre procurando o ponto fraco e simplesmente pulam para plataformas com controles mais flexíveis.
“As pessoas pensam que bitcoin é apenas uma maneira divertida de ganhar dinheiro”, disse a mãe de uma das vítimas, “Eles não conhecem o outro lado.”