Em uma rua sem árvores sob o sol escaldante, o soldador Abbas Abdul Karim trabalha sobre uma bancada de metal.
Quem vive em Basra, no Iraque, conta com o calor intenso, mas, para Karim, é implacável. Ele precisa trabalhar durante o dia para ver o ferro que habilmente molda para grades de escada ou que solda no batente de portas. O calor é tão extenuante que ele não consegue se acostumar. “Sinto meus olhos queimando.”
Trabalhar ao ar livre nas temperaturas escaldantes do verão do Iraque não é apenas árduo. Pode causar danos ao corpo em longo prazo. Sabemos o risco que Karim corre, porque medimos a temperatura: no fim da manhã, o ar em torno de Karim atingiu um índice de calor de 52°C. Isso cria um alto risco de insolação —especialmente com suas roupas pesadas e o sol direto. As imagens térmicas mostram calor adicional saindo de seu equipamento, tornando seu espaço de trabalho ainda mais perigoso.
A luta do corpo para suar e se resfriar pode causar desidratação e colocar pressão extra sobre os rins. Com o tempo, isso aumenta o risco de cálculos e doenças renais. O coração também trabalha mais, tentando bombear mais sangue para a pele e liberar o calor do corpo.
Enquanto Karim trabalhava, nosso monitor descobriu que sua pulsação subia, indicando aos especialistas que sua temperatura corporal havia aumentado cerca de 1°C, o que impõe um estresse perigosamente alto ao coração. O sangue que lhe chegava ao cérebro provavelmente era reduzido durante cerca de uma hora, já que o fluxo sanguíneo era necessário em outro lugar. Ele se sentiu tonto e teve de parar. “Parece que o calor está saindo da minha cabeça”, comentou.
O que Karim estava experimentando não era uma onda de calor. Era apenas um dia médio de agosto em Basra, cidade pioneira da mudança climática —e um vislumbre do futuro para grande parte do planeta, conforme as emissões humanas vão distorcendo o clima.
Até 2050, quase metade do mundo pode estar vivendo em áreas que apresentam níveis perigosos de calor por pelo menos um mês, incluindo Miami; Lagos, na Nigéria; e Xangai, segundo projeções de pesquisadores da Universidade Harvard, em Massachusetts, e da Universidade de Washington.
À medida que monitorávamos as atividades diárias das pessoas em Basra e na Cidade do Kuwait, documentamos sua exposição ao calor e como isso tinha transformado a vida delas. O que vimos expôs a tremenda lacuna entre aqueles que têm os meios para se proteger e aqueles que não têm. Também vimos uma realidade ainda mais inquietante: ninguém consegue escapar completamente do calor debilitante.
O calor fez Kadhim Fadhil Enad acordar. O ar-condicionado de sua família havia parado e ele se viu suando no escuro. Altas temperaturas governariam o resto de seu dia. Para ele e muitos outros em Basra, o calor crescente alterou os dias de trabalho e os horários de sono.
Quando Enad, 25, e seu irmão, Rahda, saíram para o trabalho pouco depois das quatro da manhã, a sensação do lado de fora era de 46°C. Os dois trabalham na construção civil. Nos verões sufocantes do sul do Iraque, isso significa correr para adiantar o máximo possível antes que o sol apareça e o calor mais severo do dia comece. Mesmo que possam adaptar sua programação, como Enad fez, e começar o trabalho no meio da noite, já está tão quente que a exaustão trunca a jornada de trabalho, reduzindo a produtividade e corroendo os ganhos.
O calor extremo está alterando a vida no mundo inteiro, inclusive no Paquistão, na Índia, na Tunísia, no México, na China central e em outros lugares. E, quanto mais as temperaturas subirem, maior será o número de trabalhadores afetados. Em âmbito global, os efeitos do calor extremo já somam centenas de bilhões de dólares em trabalho perdido a cada ano.
Eram 5h30 da manhã na Cidade do Kuwait quando Abdullah Husain, 36, deixou seu apartamento para passear com seus cães. O sol mal tinha nascido, mas o dia já estava sufocante. Ele contou que no verão precisa sair com os cães mais cedo, antes que o asfalto fique tão quente que lhes queime as patas. “Tudo depois do nascer do sol é um inferno.” Professor assistente de ciências ambientais na Universidade do Kuwait, Husain vive uma vida muito diferente da de Enad em Basra. Mas os dias de ambos os homens são afetados pelo calor inexorável.
Basra e a Cidade do Kuwait distam cerca de 130 quilômetros, e geralmente têm o mesmo clima, com temperaturas de verão superando 38°C por semanas a fio. Mas, de outras maneiras, são mundos separados. Ambos os lugares produzem petróleo, mas no Kuwait a commodity gerou grande riqueza e proporcionou aos cidadãos um alto padrão de vida. Essa vasta lacuna econômica é evidente na forma como as pessoas podem se proteger do calor, uma divisão entre ricos e pobres que está cada vez mais presente no mundo todo.
Husain vai para o trabalho por rodovias largas em um carro com ar-condicionado; Enad caminha para o trabalho em ruas repletas de lixo apodrecendo rapidamente. Husain leciona em uma universidade com ar-condicionado; mesmo trabalhando à noite, Enad não pode escapar de seu mundo em aquecimento.
A tremenda riqueza petrolífera do Kuwait permite proteger as pessoas do calor —mas essas proteções têm custo próprio, prejudicando a cultura e o estilo de vida. Quando o calor chega, as pessoas abandonam parques e áreas ao ar livre. Escorregadores, balanços e outros equipamentos de playground ficam tão quentes que podem queimar as pernas das crianças. A maioria dos habitantes evita sair de casa —o que afeta sua saúde. Apesar da abundância de sol, muitos kuwaitianos sofrem de deficiência de vitamina D, que o corpo produz mediante a luz solar. Muitos também estão acima do peso.
Até o fim do século, Basra, Cidade do Kuwait e muitas outras provavelmente terão vários dias perigosamente quentes por ano. O número de dias dependerá do que as pessoas fazem nesse meio-tempo.
De acordo com as previsões dos pesquisadores de Harvard, mesmo que o ser humano reduza significativamente as emissões de carbono, até o ano de 2100, a Cidade do Kuwait e Basra experimentarão meses de calor e umidade mais quentes do que 39°C, muito mais do que na última década. As estimativas para o futuro são inexatas, mas os cientistas concordam que a situação vai piorar —e pode ser catastrófica se as emissões não forem reduzidas. Nesse cenário, Miami, por exemplo, poderia experimentar um calor perigoso durante quase metade do ano.
Husain, o professor, disse que a maioria dos kuwaitianos não pensa na relação entre a queima de combustíveis fósseis e o calor: “As pessoas reclamam, mas isso não promove uma ação ou uma mudança de comportamento. Elas aproveitam para se bronzear ou ir à praia, mas, se estiver muito quente, ficam em casa no ar-condicionado.”
E como as emissões não respeitam fronteiras, a Cidade do Kuwait e Basra continuarão a ficar mais quentes, independentemente do que façam, a menos que grandes emissores como os Estados Unidos e a China mudem de rumo.
Antes que Karim, o soldador, nascesse em 1983, Basra era uma cidade mais verde e fria. Os bosques de tamareiras suavizaram a temperatura, e os canais que irrigavam seus jardins lhe renderam o apelido de “a Veneza do Oriente”.
Muitas dessas imponentes árvores estavam sendo cortadas quando Karim era criança, e muito poucas permaneceram quando Enad, o trabalhador da construção civil, crescia no início dos anos 2000. Mas, mesmo assim, a cidade ainda estava pontilhada de tamariscos, arbustos saudáveis que irrompiam anualmente com flores rosas e brancas. Agora, a maioria deles também já não existe. Sem eles, Basra se transformou em uma cidade de concreto e asfalto, que absorve e irradia calor muito depois do pôr do sol.
No futuro, muitas pessoas ao redor do mundo migrarão para escapar do calor. Mas provavelmente haverá muitas outras que, como Karim e Enad, não terão os recursos para chegar a um país mais verde. E as nações mais ricas que já estrangulam suas fronteiras provavelmente tornarão a imigração ainda mais difícil à medida que as pressões climáticas aumentam.
Karim e Enad sonham em se mudar. Karim quer um lugar “mais verde”; Enad, um “mais frio”. Enad espera se casar e ter filhos, e criá-los em algum lugar que tenha “espaço para a natureza”: “As casas vão ser feitas de madeira e vai haver uma floresta.”
Alissa J. Rubin
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