Estava preparando minha reidratação anual de ideias, planejando a maquiagem final daquele livro, me organizando para assistir tranquilamente à posse de Lula pela televisão quando fui surpreendido por uma convocatória. Minha esposa, em tom marcial, anunciava: “Vamos para Brasília.”
Ela já tinha tudo decidido. Mancomunada com aquela minha irresistível aluna querida, que mora na capital federal, elas tinham tramado uma viagem de carro. Ela nunca foi assim tão fã de política, mas, naquele momento, senti uma espécie de entrecruzamento de temporalidades. Lembrei-me dela chorando pela educação no dia da vitória do Cramunhão. Lembrei-me de nossa filha furiosa com os destratos ambientais, nas ocupações do MTST e nos aldeiamentos indígenas.
Entendi logo que era assunto de foro íntimo, sagrado e irrevogável. Tipo promessa. Quando o choro de tristeza se junta com o trovão da raiva e o desejo de viagem, eu me entrego até mesmo para uma sessão de águas termais em Araxá.
Uma das ideias mais interessantes de Hegel é a de que o tempo não é uma experiência constante, uniforme e retilínea. Por isso, ele às vezes parece andar mais depressa, outras vezes não passa, outras tantas cria passados que ficam voltando em uma estranha elipse. Nessa elipse sem centro, muitos tempos acontecem ao mesmo tempo; alguns se realizam, outros não. Lacan, com uma certa ajuda de Heidegger, acrescentou a essa compreensão da temporalidade a ideia de que as mudanças entre um tempo possível e outro são sentidas como descontinuidade e corte, precipitação e atraso, pressa e angústia.
Foi essa a sensação que tive nos últimos três dias em Brasília. Enquanto caminhava, entre a multidão, apertado pelas barreiras, amassado entre pessoas, me lembrava de uma daquelas poucas vezes em que meu pai me levou a um estádio de futebol. Me sentia adulto, pela primeira vez andando no ar. Ao mesmo tempo, alviverde imponente recebendo abraços de YouTube. Dava medo, mas também estranha expectativa. Iminência e testemunho de um grande acontecimento. Tristeza porque na entrada desse jogo, faltava o Pelé, nosso faraó do futebol.
Lembrei-me de Hegel, assistindo à entrada de Napoleão em Iena, achando que aquilo era o começo de um novo mundo. O mesmo Napoleão que dizia aos seus soldados que, do alto destas pirâmides, 40 séculos de história vos contemplam. Confesso que também me passou, ainda que de relance, a imagem de seu tolo sobrinho, Luis Bonaparte III. Enquanto o 18 Brumário de Napoleão trazia o espírito republicano para a Europa, a farsa do seu sobrinho, na mesma data simbólica, restaurava o antigo regime e anistiava as pessoas. Qual história teríamos à nossa frente?
Durante a caminhada em direção da Praça dos Três Poderes, sentia-se a tensão do que podia acontecer. Milhares de bolsonaristas lutavam contra a realidade a poucos quilômetros dali. Um pouco de medo, um tanto de incerteza e outro tanto de tristeza eram ingredientes da gentileza que lentamente se sentia irradiar no interior da massa.
Quanto mais nos aproximamos de um dos focos da elipse, quanto mais visualizamos esse centro provisório e quase regular, mais perto estamos de perceber que esse centro não existe. O centro é uma espécie de ilusão que se desloca de um lado para o outro, enquanto giramos em todos dos dois focos móveis. Democracia é uma aventura que demanda renunciar ao centro do mundo, suspender hierarquias celestiais e trocar elites irresponsáveis por elipses históricas.
Durante o discurso de Lula, o volume do som estava baixo, quase não se ouvia nada a poucos metros da última tela. Na minha frente, um senhor atarracado murmurava coisas baixinho, parecia falar em línguas. A etiqueta nas costas da camisa sugeria que era de Tocantins. Durante o hino, cantado em alto e bom som por todo mundo, percebi que o tal sujeito, de cabeça baixa, com seus mais de 60 anos, não estava nem rezando, nem cantando. Só chorava.
No dia seguinte, mesma hora, estávamos no Museu Nacional da República, para a exposição “Brasil Futuro: as Formas da Democracia”, organizada em menos de um mês por Lilia Schwarcz, Paulo Vieira e Marcio Tavares. Agora o anjo da história não estava mais assustado, olhando para trás, como o clássico exemplar de Paul Klee. A elipse da história estava logo ali na entrada, na forma dos três “Orixás”, pintados por Djanira em 1966.
Pensei de novo na farsa de Napoleão III. Djanira da Motta e Silva (1914-1979) foi católica fervorosa, enterrada em túnica de freira. Ao mesmo tempo, fez da sua casa um ponto de encontro para a arte popular no Rio dos anos 1940. Pensei ironicamente: qual das duas Djaniras tinha sido retirada do Palácio da Alvorada, furada por um atentado a caneta BIC, em meio a uma cruzada extemporânea da cristandade? A Djanira de Iansã, Oxum e Nanã, a Djanira cristã ou a Djanira que ousou misturar cultura popular com vanguardas europeias?
Lembrei-me da conferência de Achille Mbembe, em que ele dizia que as peças africanas espalhadas pelos museus do mundo estão vivendo uma espécie de exílio ou de sequestro em relação às suas funções sociais originais. Todavia, restitui-las aos seus donos em Togo, Serra Leoa ou Congo talvez não faça jus às suas histórias, que agora os tornaram objetos expatriados.
Contra isso, ele propõe um imenso museu global, itinerante e nômade, chamado museu dos “in-comuns” (uncommon). O termo não se refere ao incomum dos objetos exóticos, diferentes ou únicos, mas aos objetos que perderam sua comunalidade, que foram despossuídos de sua história e que podem introduzir seu próprio sequestro e aprisionamento como testemunho vivo de sua história. Tornados mortos, inativos e invisíveis pela elevação à condição de monumento à colonização, eles se tornaram estranhamente patrimônio comum, sediado em uma nação, propriedade de um museu, fonte de renda para uma instituição de memória.
Lembrei-me da conferência de Mbembe, de como ela incorporava a teoria dos tempos simultâneos e das histórias ainda não acontecidas, como uma espécie de titulação em ato pela curadoria. Oxum é a rainha das águas doces e correntes, figurada empunhando um espelho. Iansã é a senhora das tempestades e dos ventos, mas também guia dos mortos e rainha da pacificação ou da guerra.
Finalmente, Nanã é uma entidade das águas paradas, do barro e da ancestralidade. Temos, então, três mulheres, expulsas da casa presidencial, todas elas ligadas à água, cada uma delas referida a um aspecto da história: o tempo passado que se acumula sob a guarda de Nanã, o instante presente do trovão de Iansã e o rio que corre à nossa frente como caminho futuro de Oxum. Cada uma delas é o reflexo de uma imagem diferente de nós mesmos.
As três Orixás combinam com as três partes da exposição sobre a Democracia: retomada dos símbolos do passado, descolonização de nosso futuro e reinvenção de quem “somos nós”. Democracia por vir, mas não sem o medo do trovão, a tristeza pelos que se foram e a coragem daqueles que choram, mas não esquecem. Daí que a exposição se organize como um conjunto de vocativos: “área militar”, “procura-se”, “liberdade e amizade”, ao som da voz que gargalha ao fundo, com imagens múltiplas da alegria, algo irônica, algo aliviada, algo disfórica, obra de, salvo engano, Rivane Neunschwander.
Foi essa presença da voz que se ouviu tanto na posse Margareth Menezes, no imortal Ministério da Cultura, o Minc, quanto no histórico discurso de Silvio Almeida à frente do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Aqui, mais uma vez, encontrei minha elipse histórica, mas agora ela aparecia em contraface com a eclipse histórica que vivemos nos seis últimos anos e com a emergência merecida de uma certa e esquecida elite histórica, presente desde Joaquim Nabuco até Luis Gama, em assuntos jurídicos.
Como se fosse preciso, em ato proclamativo, dizer mais uma vez que existimos, não apenas como conjectura abstrata, mas como seres de canto, corpo e voz. As gargalhadas da democracia rimavam assim com o choro de um desconhecido e com a voz dos que se viram privados de direitos. Todos eles faziam parte de um mesmo colar de contas, entre passado, presente e futuro, cuja história não precisa mais ser contada pelo espaço em branco nas paredes de um palácio, nem pelo silêncio das exposições, muito menos pelos hiatos de cidadania.
Fomos para casa com o coração em festa e a alma a gargalhar. Eu aqui com minhas contas ainda cantava: “Hey Faraó…”