Pensar em como responderíamos a um cenário pós-apocalíptico como esse não se trata de pessimismo ou de uma fixação macabra com desastres, mas um exercício de ‘história futura’ baseada em pesquisa.
Imagine que um asteroide gigante atinja a Terra daqui a alguns anos, bloqueando o Sol e causando um colapso da agricultura em todo o mundo. Nós conseguimos ver ele chegando, mas todas as tentativas de redirecionar sua trajetória falham.
À primeira vista, nossas chances não parecem boas. O planeta está envolto em chamas. Peixes mortos cobrem os rios e canais. Os agricultores perdem a maior parte do seu gado.
Depois de apenas alguns dias, o ar começa a esfriar e as temperaturas médias globais despencam. As colheitas falham catastroficamente e o sistema de abastecimento de alimentos como conhecemos desmorona.
No entanto, e se eu dissesse que fomos capazes de sobreviver — que conseguimos construir um novo sistema alimentar usando o conhecimento do passado?
Pensar em como responderíamos a um cenário pós-apocalíptico como esse não é pessimismo ou fixação macabra em desastres.
Em vez disso, é um exercício de “história futura” baseada em pesquisa — uma maneira de viajar para trás no tempo a partir de um futuro possível, inspecionando cada conjuntura que nos leva daquela época até agora.
É uma prática amada por líderes corporativos e estrategistas militares porque incentiva a preparação, mas também requer imaginação. Isso nos ajuda a ver o presente sob uma luz diferente.
Então, vamos começar. Faz um ano desde que o asteroide nos atingiu. E foi assim que sobrevivemos.
Lições catastróficas
A melhor forma de prever o que aconteceria quando um objeto colossal se chocar contra nós envolve estudar eventos passados.
Quando o asteroide Chicxulub atingiu a Terra há 66 milhões de anos, ele transformou o leito rochoso do oceano em plasma, vaporizou toda a vida em um raio de 2.400 km e jogou detritos ao redor do mundo, numa chuva de destruição incandescente. Cerca de 25 trilhões de toneladas de matéria desenterrada entraram na atmosfera, bloqueando a luz solar.
Ao contrário dos dinossauros, muitos de nossos ancestrais mamíferos sobreviveram às terríveis consequências porque eram escavadores. Teríamos que fazer o mesmo por um tempo.
Mas não foram apenas o estilo de vida e a morfologia que os ajudaram. A dieta deles também os favoreceu.
Os dinossauros que sobreviveram a terremotos, incêndios e tsunamis logo descobriram que não tinham nada para comer. Nossos ancestrais mamíferos, por outro lado, viviam de insetos, nozes e plantas aquáticas (com pouca luz solar).
Apenas um pequeno número de dinossauros terópodes — um clado que já incluiu o Tyrannosaurus rex e do qual todas as aves contemporâneas evoluíram — conseguiu sobreviver graças às suas dietas onívoras, bico e uma moela que os ajudou a extrair nutrição das sementes.
Esta lição pode sugerir que devemos preparar estoques de alimentos básicos de emergência. De fato, em um depoimento perante o Congresso dos Estados Unidos enquanto a Guerra Fria estava esquentando, as autoridades americanas propuseram um “biscoito de sobrevivência para todos os fins” feito de triguilho.
Esse é um produto considerado comestível “após 3.000 anos em uma pirâmide egípcia”.
Latas de sopa Campbell, suco em pó Tang e o “Alimento Multipropósito” da General Mills (produto à base de soja rico em nutrientes para uso em situações de “emergência ou desastre”) foram todos produzidos sob ordens do governo americano para encher as prateleiras de abrigos nucleares.
No entanto, armazenar comida suficiente para alimentar a todos por uma década — ou mesmo um ano — criaria seus próprios problemas.
Estima-se que os estoques existentes de alimentos secos poderiam alimentar cerca de 10% da população global por cinco anos.
Se os governos ou a ONU (Organização das Nações Unidas) adotassem a mentalidade prepper (estratégia de sobrevivência dos super-ricos) e produzissem as cerca de 1,6 bilhão de toneladas necessárias todos os anos para alimentar todos os humanos na Terra, os preços disparariam. Isso também seria uma catástrofe. Precisaremos encontrar maneiras de cultivar alimentos mais uma vez.
Fazendas subterrâneas
Quando os EUA detonaram uma bomba atômica sobre a cidade japonesa de Nagasaki, aqueles que se esconderam em túneis de minas antigas conseguiram sobreviver desde que não estivessem muito perto da entrada.
Em um caso famoso, Akiko Takakura, de 20 anos, sobreviveu, apesar de estar a 300 metros do hipocentro da explosão porque ela estava dentro de um prédio de concreto armado — a agência de Nagasaki do Banco do Japão.
Diante de um ataque de asteroide, os cidadãos de Ancara, Pequim, Moscou e Montreal terão, portanto, uma vantagem. Cada um deles tem grandes espaços de trânsito, armazenamento ou comércios no subsolo — como inversões misteriosas das cidades acima.
A Turquia pode até utilizar a vasta rede de cidades subterrâneas na província de Nev?ehir, construída pelos frígios há 2.500 anos e expandida pelos capadócios gregos temendo perseguição na era bizantina.
O Reino Unido também estará em uma posição forte. Além das redes de trens subterrâneos em Londres, Newcastle e Sunderland, Glasgow e Liverpool, existem abóbadas subterrâneas, abrigos, cavernas e adegas em Nottingham, Edimburgo, Chislehurst e Stockport.
Além de abrigar humanos, espaços subterrâneos poderiam ser usados para cultivar alimentos nutritivos. Apesar da falta de luz e do ar úmido e com má circulação, certas culturas podem prosperar nesses locais com a abordagem correta. Felizmente, experimentos em pequena escala na agricultura urbana subterrânea já estão em andamento.
Por exemplo, Paris abriga 6 km² de espaço inexplorado na forma de estacionamentos, parte dos quais a empresa Cycloponics transformou em fazendas de cogumelos. Enquanto isso, a empresa Growing Underground está cultivando vegetais em um antigo abrigo antiaéreo em Clapham, Londres.
Por um curto período, brotos, microverdes (versões bem menores de vegetais comestíveis), aspargos brancos, ruibarbo e cogumelos podem ser cultivados com luz artificial zero ou mínima (muitas plantas germinarão e se transformarão em mudas mesmo sem luz, mas só se desenvolverão até ali).
Os brotos são uma ótima fonte de vitaminas, ácidos graxos e fibras, e usam a energia armazenada na semente para crescer. O mesmo vale para os microverdes, que podem fornecer uma variedade de sabores — de picante a azedo e doce — para enfeitar outros alimentos.
Nenhuma delas é uma solução de longo prazo, mas poderíamos usar nosso tempo no subsolo para começar a construir uma.
Em dezembro de 2020, a Autoridade Carbonífera e o Serviço Geológico Britânico divulgaram mapas de calor para os estimados 25 km² de campos de carvão em desuso em todo o Reino Unido, principalmente nas terras centrais inglesas, norte, sul do País de Gales e sul da Escócia.
O mapa é destinado a desenvolvedores para que futuras habitações possam ser construídas para extrair calor das águas que retornaram às minas depois de terem sido desativadas. Também pode ser útil para a agricultura.
Refeições prontas
Uma semana se passou. Saímos de nosso refúgio temporário e testemunhamos uma paisagem que não reconhecemos mais. Tudo que era verde está morrendo. A fuligem flutua no ar e a luz lembra o crepúsculo antes do amanhecer, prometendo um brilho que nunca chega (ou pelo menos pode levar de cinco a 10 anos para chegar).
Entramos em contato com outros sobreviventes e concordamos que todo o conhecimento e tecnologia serão de código aberto. Cada um de nós tem pacotes iniciais: bactérias, sementes e células.
Como os cogumelos não contêm cloroplastos — as pequenas fábricas movidas a luz solar em plantas que convertem CO2 em açúcares — eles não precisam de luz para crescer. O que eles precisam é de calor, umidade e um substrato de matéria orgânica para frutificar, recém-abundante na vegetação derrubada do velho mundo biológico.
Infelizmente, os cogumelos não são uma grande fonte de calorias. Muitos são venenosos. A maioria produz esporos tóxicos para humanos em alta concentração e rasga edifícios que preferimos usar como abrigo. O cultivo de cogumelos deve ocorrer em porões, edifícios e túneis especialmente designados.
Não será fácil conseguir uma dieta equilibrada, mas isso pode ser feito. As pessoas continuarão comendo espécies de ruminantes sobreviventes como veados, vacas, cabras e galinhas, alimentando o número reduzido que mantemos com gramíneas mortas, folhas e madeira em decomposição.
Quanto às vitaminas complicadas, E, A e B12 podem ser sintetizadas por processos industriais. Outras, como K ou D, serão mais difíceis de adquirir.
A maior parte da vitamina D comercial hoje vem do refino e irradiação da lã de ovelha. No curto prazo, podemos extrair nutrientes de flores, folhas e partes não lenhosas das árvores. O chá de agulha de pinheiro, por exemplo, tem muitas vezes mais vitamina C do que um suco de laranja. O chá de urtiga contém vitaminas A, C e K, e o chá de dente-de-leão é rico em potássio.
Modelos de computador construídos para estudar uma guerra nuclear total — muitas vezes usado como análogo para um enorme baque de asteroide — preveem que menos de 40% da luz normal persistirá perto do equador, com apenas 5% mais perto dos pólos.
A beterraba sacarina mostrou tolerância a temperaturas mais baixas e podemos ter sucesso limitado no cultivo de cenouras, repolhos, batatas e ervilhas.
Muitas outras culturas essenciais, como batata, trigo, cevada, arroz, milho e soja, poderiam ser realocadas para os trópicos e complementadas por mandioca, baobá, espinafre selvagem e inhame, que já estão lá.
Aqui construiremos estufas — supondo que a cooperação e o comércio continuem possíveis — estruturas simples feitas de madeira, filme de polímero, cascalho e pregos que maximizem a luz solar que recebemos.
Comida pós-fazenda
Uma visão comum nas cidades hoje são rios e canais entupidos com algas. No entanto, esse imenso poder de crescimento pode tornar as algas altamente valiosas em um desastre. Espécies como chlorella e nanochloropsis, entre outras, são ricas em nutrientes, incluindo os raros ácidos graxos ômega-3 e ômega-6, e podem ser cultivadas com pouca luz e colhidas durante todo o ano.
Um trabalho de pesquisa observou a rápida recuperação do fitoplâncton no Chicxulub (uma antiga cratera de impacto soterrada no México), um lembrete da “grande resiliência da biosfera unicelular”.
Se cultivar algas em piscinas, tanques, lagoas e canais abandonados parece um devaneio solar absurdo, bem, provavelmente é. Existem, de fato, outros meios mais estáveis para alcançar nossos fundamentos nutricionais.
É bem conhecido que as algas prosperam nas cidades devido ao escoamento de fertilizantes da agricultura. Das milhares de espécies conhecidas, muitas são tóxicas para humanos e outros animais. Talvez no futuro possamos reformular esse mau uso da química e da biologia e aproveitar o processo para usá-lo deliberadamente.
Com matérias-primas como petróleo, gás natural, CO2 ou as sobras não comestíveis das plantações (resíduos que sobraram da colheita ou extração de madeira) podemos produzir proteínas “sintéticas”, açúcar e gorduras — todos os três macronutrientes humanos.
No ano passado, a Nasa (agência espacial norte-americana) concedeu três prêmios importantes a equipes pioneiras na conversão de CO2 em açúcar para uso em futuras missões espaciais.
Historicamente, em períodos de guerra ou crise econômica, a infraestrutura foi redirecionada para atender às necessidades mais prementes da sociedade. Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA adaptaram 66% das fábricas de automóveis para a produção de aeronaves.
E, depois que a pandemia de covid-19 começou em 2020, a empresa de roupas Barbour fez aventais hospitalares e a Land Rover reprogramou suas impressoras 3D de prototipagem de peças de carros para fabricação de viseiras de proteção.
Novamente, pelo menos no Reino Unido, a ação maior será no norte. Refinarias de biocombustíveis e fábricas de papel em Selby, Grimsby, Wilton, Manchester e outros lugares poderiam ser reaproveitadas para produzir açúcares comestíveis a partir de biomassa lignocelulósica.
Um estudo descobriu que as fábricas de papel são, de fato, mais adequadas para o trabalho, ostentando uma correspondência de 85% de componentes com uma usina de açúcar bioquímico.
Transformar hidrocarbonetos em ceras e gorduras digeríveis — literalmente transformando combustíveis fósseis em alimentos — pode ajudar a suprir várias deficiências. Não seria a primeira vez.
Na década de 1910, o químico Arthur Imhausen adaptou um processo conhecido como oxidação de parafina para criar manteiga aus kohle, ou “manteiga de carvão”, em resposta à inflação na Alemanha.
Outra inovação de guerra, a cultura de proteínas de levedura de célula única para alimentar soldados, foi adotada na Grã-Bretanha para produzir um aditivo para ração animal na década de 1960 e, finalmente, tornou-se o substituto de carne Quorn (uma proteína derivada de fungos).
Uma nova fábrica em Chongqing, na China, usa um processo de síntese química refinado para produzir 20 mil toneladas de proteína a partir de bactérias. Essa proteína unicelular requer apenas metano, oxigênio e nitrogênio para crescer e será usada para alimentar peixes, mas pode ser ajustada para humanos.
Pode não parecer especialmente delicioso, mas a ferramenta de sobrevivência mais importante que temos é uma história que sugere que podemos confiar: a inovação culinária.
Talvez possamos pensar nos alimentos à base de plantas de hoje como um laboratório para fabricação — no qual as proteínas da ervilha replicam a fibrosidade da carne ou das raízes da soja para fazer os hambúrgueres vegetais “sangrarem”.
Essa é a continuação de uma tecnologia que tem sido utilizada em todas as culturas para intensificar o sabor, tornar os alimentos mais duradouros, transformar sua forma, cor, textura ou desencadear efeitos psicoativos: a fermentação.
Os resultados até agora incluem pão, cerveja, kimchi, tempeh (alimento originário da Indonésia fonte de proteínas vegetais), molho de soja, vinho e queijo, assim como o ácido cítrico, etanol combustível e penicilina. Mas a história está longe de terminar.
O mar
É difícil prever o que acontecerá com os oceanos após o baque. A pesquisa sobre o inverno nuclear prevê acidificação, aumento da radiação ultravioleta e colapso das teias alimentares.
Alguns argumentam que um “amortecedor” bem administrado, reduzindo a pesca atual à medida que o dia do impacto se aproxima, pode nos fornecer um frenesi de frutos do mar quando mais precisarmos.
Atualmente, menos de 2% de nossas calorias vêm do oceano. Apenas 22% de todos os navios em condições de navegar são usados para pesca. Quando chegar a hora, porta-aviões, navios porta-contêineres, rebocadores e iates devem ser requisitados para a aquicultura, usando rotas marítimas concebidas para um propósito totalmente diferente.
A empresa de serviços offshore Roxel Aqua desenvolveu um sistema modular (conhecido como “o conceito Octopus”) que converte plataformas de perfuração de petróleo em fazendas de peixes e está buscando aprovação regulatória.
Em outros lugares, como no Golfo do México, empresas e a academia colaboraram em sistemas de “aquacultura multitrófica integrada” que usam plataformas de petróleo desativadas para cultivar mexilhões, peixes e algas, ao mesmo tempo em que produzem energia renovável.
As algas marinhas crescem com pouca luz, o que significa que podem ser protegidas dos raios UV perigosos, submergindo as linhas de cultivo em profundidades maiores. Espécies como wakame, kelp e emi-tsunomata são mais eficientes, quando comparadas aos peixes, para converter recursos limitados em nutrição valiosa para os seres humanos.
Bivalves como amêijoas, mexilhões e ostras são excelentes fontes de ferro, a deficiência nutricional mais comum entre os humanos em todo o mundo. Elas crescem em espaços apertados e não sofrem de piolhos e doenças como os peixes.
Para começar mais rápido, sardinhas e anchovas selvagens são carregadas com a cada vez mais escassa vitamina D. Elas também têm o bônus adicional de amadurecer em seis meses e botar milhares de ovos.
Os ecossistemas marinhos florescem onde superfícies rígidas e estáveis se tornam disponíveis em plataformas de petróleo abandonadas. Além das plantas, anêmonas, peixes e aves marinhas que se aglomeram ao seu redor, essas plataformas podem abrigar alojamentos, silos cheios de ração, currais gigantescos e cabos submarinos extremamente longos para o cultivo de bivalves ou algas marinhas.
Elas são construídas para resistir ao mau tempo: ilhas do passado das quais podemos estimular a regeneração nos mares. Se o clima estiver frio o suficiente ? é possível que possamos caminhar até o Complexo Douglas, na costa de Liverpool, e usar sua broca para acessar as regiões mais profundas.
Terra culinária
O recente sucesso da Nasa em alterar o caminho do asteroide Dimorphos é reconfortante, e os pesquisadores estimam a probabilidade de uma colisão do tamanho de Chicxulub em apenas 0,000001%.
Mas isso não significa que não devemos nos preparar para um colapso catastrófico do suprimento de alimentos. Afinal, os asteroides não são a única ameaça que enfrentamos: também há mudanças climáticas, bioterrorismo, patógenos de plantas e ervas daninhas ultrarresistentes, inverno nuclear e supervulcões.
No futuro, talvez precisemos afrouxar nossa ideia de como é a agricultura. Aqui eu usei um asteroide para fazer isso — mas a arte, o comércio e a ciência têm um papel a desempenhar.
Nosso sistema alimentar atual é mantido por subsídios governamentais, monopólios corporativos e um viés cultural em relação aos alimentos que percebemos como naturais ou tradicionais. No entanto, tanto os desastres causados pelo homem quanto os naturais são inevitáveis.
Para nos prepararmos, devemos reconsiderar os lugares e saberes que podem se tornar viáveis quando os campos e a luz do sol não existirem mais: túneis, minas, moinhos, fábricas e plataformas oceânicas.
Isso pode nem sempre parecer palatável para alguns, mas a sobrevivência de nossa espécie pode depender disso.
*Philip Maughan é um escritor e pesquisador que vive entre Londres e Berlim. Ele é cofundador da plataforma de pesquisa de alimentos Black Almanac.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63524157