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‘Não consegue segurar o lápis direito’: tecnologias prejudicam escrita

‘Não consegue segurar o lápis direito’: tecnologias prejudicam escrita

Cada vez mais alunos apresentam dificuldades para escrever à mão. A constatação parece ser unânime entre professores e pais, seja na França ou no Brasil. O principal motivo: o uso excessivo de novas tecnologias, como tablets e smartphones, que acostumaram crianças e adolescentes à escrita digital. Em entrevista à RFI, especialistas alertam para os perigos deste fenômeno que tem graves consequências na capacidade da escrita. 

“Ele não consegue segurar um lápis direito”, diz Luana, mãe de um menino de 6 anos que enfrenta dificuldades para aprender a escrever na escola.

À RFI, a brasileira radicada na França contou que a criança se acostumou desde pequena a manipular o tablet e controles de videogames, o que acabou afetando sua coordenação motora. Segundo Luana, o garoto reconhece as letras, tem forte habilidade para cálculo, mas sua interação manual é inteiramente voltada para suportes digitais, cuja utilização domina com destreza.

“Para ele, é mais fácil digitar algo do que segurar uma caneta. Afinal, essas tecnologias facilitam tudo. Utilizando apenas um dedo você pode escrever. Até pintar fica mais fácil”, observa.

A dificuldade que Luana enfrenta com o filho, e que tem tentado solucionar com a ajuda de pedadogos e psicólogos, não é uma exceção. O fenômeno parece estar se tornando uma regra nas salas de aula, como contou à RFI a professora francesa Roxanne, que leciona para turmas do 5° ao 9° ano.

“Percebo que os alunos não apenas estão mais lentos para escrever, mas que a prática os incomoda muito. Por exemplo, quando eles têm que copiar lições curtas, com cerca de dez linhas, frequentemente vários reclamam e me perguntam se ainda precisarão escrever muito mais”, relata.

Para piorar a situação, a professora percebe que há uma diminuição da prática da escrita durante as aulas. “Responsabilizo o sistema escolar francês por isso. Diante de programas cada vez mais densos, classes sobrecarregadas, a alunos com perfis diversos e com diferentes problemas de aprendizagem, os educadores têm menos tempo para treinar a escrita”, lamenta.

Exercícios de caligrafia para o 4° ano do ensino básico

Nas escolas do Brasil, o panorama não é muito diferente. Flávia Machado é professora do 4° ano do ensino básico em Tubarão (SC). Percebendo a dificuldade dos alunos para escrever, ela diz que se viu obrigada a passar exercícios de caligrafia – uma técnica que antigamente era empregada para crianças no início da alfabetização.

“Eles simplesmente não sabem escrever as letras corretamente. Nós sabemos, por exemplo, que quando queremos escrever à mão, começamos de baixo para cima, da esquerda para a direita. Mas tenho alunos que não obedecem essa sequência linear para escrever. Eles desenham as letras de forma incoerente”, afirma.

Flávia diz que exige a escrita à mão em trabalhos em sala de aula e em deveres, mas as próprias famílias são resistentes à estratégia. “Se envio uma pesquisa para as crianças fazerem em casa, os pais começam a me mandar mensagens perguntando: ‘eles podem digitar, porque assim terminam mais rápido?'”, conta.

Proibição de smartphones nas escolas francesas

Desde o início do ano escolar de 2018, a França proibiu o uso de smartphones pessoais nas escolas, para o alívio dos professores. Além disso, após vários alertas a Organização Mundial da Saúde (OMS), muitas famílias também tiveram a iniciativa de limitar o uso de novas tecnologias por crianças e adolescentes em casa. É o caso de Patricia, brasileira radicada na França, mãe de duas meninas, de 11 e 14 anos.

“Minhas filhas não têm dificuldade ou resistência para escrever porque elas foram acostumadas desde cedo a não utilizar novas tecnologias. Elas também sempre foram incentivadas a se ocuparem com livros, com desenhos à mão, com jogos não eletrônicos, como dominó e quebra-cabeça. Para mim, sempre foi óbvio que quanto mais tarde elas tivessem contato com telas portáteis, melhor”, diz.

Engenheira especializada em Ciência da Educação, Patricia é professora em um liceu particular profissional no sul da França, onde leciona para alunos de 13 a 21 anos. Para ela, o importante é saber utilizar as novas tecnologias, mas sem proibi-las.

“Eu transmito isso para minhas filhas e meus alunos: existem outras maneiras de a gente passar nosso tempo que não seja diante de telas portáteis e virtuais. Mas não sou a favor de proibir as novas tecnologias. Elas são um aliado de peso na escolaridade para pessoas com deficiência, por exemplo. O importante é saber tornar as novas tecnologias em algo positivo na sua vida”, aconselha.

Nem diabolizar, nem idealizar

Especialistas ouvidas pela RFI estão de acordo com a postura de Patricia. “Acho que não devemos em diabolizar, nem idealizar. Para mim, é realmente importante utilizar as duas alternativas no aprendizado. É preciso saber equilibrar”, avalia a grafoterapeuta Agnès Daubricourt.

Autora do livro “Jeux d’Éveil à l’Écriture” (“Jogos Para Despertar para a Escrita”, tradução livre), a especialista elabora e aplica técnicas personalizadas para ensinar crianças a aprender e a melhorar a escrita. Segundo ela, a dificuldade para escrever faz cada vez mais parte do cotidiano de professores e pais. “É comum hoje vermos crianças que não conseguem segurar um lápis de forma ergonômica, que têm dificuldade para escrever”, observa.

Segundo Daubricourt, além das novas tecnologias, outros fatores podem contribuir para dificultar o processo de aprendizagem da escrita, como a falta de estímulos ou exercícios físicos.

“As crianças não usam suficientemente as mãos quando brincam, não manipulam suficientemente: são os efeitos da modernidade. Antes deixávamos os bebês brincando no chão, eles engatinhavam, escalavam… Mas hoje temos medo de micróbios, de sujeira, então os bebês ficam estáticos nos carrinhos. O que acontece é que os reflexos arcaicos não são ativados, os músculos não se tonificam e isso vai influenciar no aprendizado da escrita no futuro”, avalia.

Por que é importante saber escrever à mão

A psicopedagoga Larissa Fonseca, especialista em comportamento e desenvolvimento infantil e adolescente, defende a evolução da educação em paralelo com as inovações e as características das novas gerações. Entretanto, lembra que a escrita à mão não deve ser deixada de lado porque implica na aprendizagem de habilidades psicomotoras fundamentais para o desenvolvimento saudável e completo da criança. “A prática e o exercício da escrita não trazem apenas o aprendizado da grafia. São habilidades que vão muito além do decodificar as letras e as palavras”, salienta.

De acordo com a especialista, diversas capacidades são desenvolvidas através da escrita no papel, como a memorização, a compreensão e a psicomotricidade. “Quando uma criança escreve à mão, ela registra melhor, ela pensa melhor, ela elabora as ideias de forma mais organizada. Então, a aprendizagem se torna mais significativa e efetiva”, reitera.

Por isso, Fonseca aconselha a professores resgatarem o recurso dos livros físicos, da leitura, do exercício da escrita e da significação deste exercício. “A importância da escrita se perdeu hoje. Muita gente pensa que como se comunica através de e-mails ou WhatsApp, não faz mais sentido saber escrever à mão. Por isso é essencial retomar o significado da escrita como algo prazeroso e significativo”, considera.

Para as famílias, a psicopedagoga sugere que pais e mães incentivem os filhos a escrever com mais frequência de forma lúdica e sem que esse exercício tenha o peso de uma obrigação. “Redijam em cartões postais, cartões de aniversário, façam listas de supermercado, bilhetes. A ressignificação da escrita à mão como uma atividade prazerosa ajuda a auxiliar a familiaridade e a conexão com essa prática”, conclui.

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