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Flip: Para Annie Ernaux, tratam mulher de cadela no aborto – 27/11/2022 – Ilustrada

A manhã deste domingo trouxe à Casa Folha, na Flip, a francesa Annie Ernaux, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura no mês passado, em um diálogo com o jovem escritor carioca Geovani Martins.

São dois autores celebrados por obras muito diferentes e distantes em geografia e geração, mas que revelaram pontos de contato insuspeitos e uma admiração mútua que tornou a mesa o testemunho de uma troca de experiências.

Um exemplo é a maneira como abordam fatos históricos dentro de seus livros —se Annie escreve sobre recortes de sua vida em obras como “O Lugar” e “Os Anos”, Geovani criou ficção partindo da linha do tempo da instalação das UPPs no Rio de Janeiro no romance “Via Ápia”.

“É necessário incluir o pessoal dentro de um contexto histórico, porque fatos políticos têm incidência no destino de cada um de nós” disse Ernaux. “Oito dias depois que me vi grávida e sem vontade de ter o filho, Kennedy foi assassinado. Aquilo para mim não tinha a menor importância, mas precisei mencionar para situar o que estava contando.”

Martins afirmou que quis registrar aquele período específico do Rio a partir de histórias que não foram vistas, na “perspectiva intimista” dos jovens negros que tiveram suas vidas afetadas pela chegada ostensiva da polícia na favela.

Outro ponto de contato foi quando os autores lembraram suas mães. “É doido porque vivemos num lugar com estrutura patriarcal, mas com relações matriarcais na nossa casa”, disse o carioca. “Escrevo livros por causa da minha avó, uma grande contadora de histórias, e da minha mãe, que me levava na Bienal do Livro. Falar sobre mães pretas é falar sobre a criação do país.”

Ernaux disse que, ao escutar Martins, ficou pensando que sua mãe era uma “mulher potente num mundo que as submete aos homens”. “Minha mãe era a pessoa forte do casal. Ela sempre amou ler, encorajava que eu lesse o tempo todo. Quando eu falei a ela com 20 anos que queria ser escritora, ela disse: se eu soubesse na época, eu também quereria fazer isso.”

A francesa voltou a tocar num dos pontos chave de sua obra, a descrição crua do aborto clandestino que fez quando era universitária, no livro “O Acontecimento”. Ela afirmou ter escrito com a intenção de que nenhuma mulher mais vivesse uma situação como essa.

“Eu descrevi em detalhes o que houve para que se soubesse como é. No hospital a gente é desprezada, tratada como cadela. A proibição é algo imposto por um poder masculino e religioso e que fere a dignidade das mulheres, como é que podemos aceitar isso?”

O diálogo direto entre os escritores voltou quando surgiu o tema da educação como meio de mobilidade social.

“Estudar, para uma população que foi escravizada e nunca teve reparação histórica, era a única saída pra ter perspectiva de futuro”, disse Martins. “Minha mãe tinha uma convicção forte disso, dizendo que eu precisava estudar para romper com tudo isso. Mas no fim o diploma também não resolve, o que resolve é o contato, o que chamo de privilégio da mediocridade branca.”

Ernaux, que foi professora de escola pública, afirmou que o sistema educacional francês é um funil invertido —poucos chegam até o fim, sendo progressivamente eliminados.

Durante toda a mesa, a Nobel de Literatura demonstrava vontade de escutar e responder diretamente às reflexões de seu jovem interlocutor, cuja obra já declarou admirar.

Ao final da mesa, ela disse que o livro de contos “O Sol na Cabeça”, que fez Geovani despontar, “foi uma revelação” para ela. “Tive a impressão de viver realmente com aquela população tão forte e viva da favela. Senti uma fraternidade mesmo não sendo brasileira.”

Ela em seguida pegou seu exemplar do livro e leu um trecho que havia sublinhado porque a havia feito pensar. Depois, o próprio Martins leu a página na edição brasileira.

Ele afirmou que “Os Anos”, livro em que Ernaux escreve sobre sua vida com maior amplidão cronológica, foi uma leitura importante para ele e “um dos poucos livros de autores brancos que li esse ano, mas preencheu bem a cota”.

Em seguida, ao comentar que conseguiu identificar sua própria juventude nas páginas escritas pela francesa, elogiou a capacidade da literatura em conectar tempos e espaços tão afastados —exatamente, por sinal, o que aconteceu neste encontro na Casa Folha.

Ao se despedir, a Nobel de Literatura agradeceu pela acolhida efusiva dos últimos dias e disse que “nunca iria esquecer” sua estadia no Brasil. O evento foi realizado em parceria com a Casa República.org.

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