Goblin poderia ser traduzido como duende. Mas não um duende prestativo e brincalhão, sorridente e inofensivo, como os que costumam ajudar Papai Noel nesta época do ano. Goblin é um duende maléfico, um elfo grotesco, um monstrengo cruel e traiçoeiro, de orelhas pontudas e pele esverdeada, invariavelmente perverso, que povoa o folclore nórdico, os jogos de RPG e a cultura pop. Na saga do Homem-Aranha, goblins inspiraram o Duende Verde (“Green Goblin” no original). Em “O Senhor dos Anéis”, os Orcs.
Meio ogro, meio gremlin, essas criaturas desagradáveis são naturalmente mesquinhas, maliciosas, ambiciosas, endiabradas, bagunceiras e profundamente egoístas. Habituaram-se a levar vantagem, praticar traquinagens e desprezar o que é coletivo. Não existe empatia no mundo dos goblins. Tampouco sororidade, alteridade ou solidariedade. Entre a autocracia e a democracia, eles optam pela “eucracia”. Minha vida, minhas regras, e ai de quem quiser dar pitaco ou impor regras.
Na vida real, inventaram o “modo goblin” de ser. Desleixo, procrastinação, autoindulgência, caos e um egocentrismo tacanho. Abrir a janela para deixar o ar entrar? Jogar o lixo no lixo? Colocar a louça na máquina? Eu não! Carregar uma sacola? Segurar a porta do elevador? Ajudar o colega de sala com dúvida num ponto da matéria? Aff…
O “modo goblin”, então restrito a certos ambientes digitais e redes sociais, tornou-se uma expressão muito repetida a partir de fevereiro, quando uma notícia falsa atribuiu à atriz ítalo-americana Julia Fox uma declaração sarcástica para justificar o fim de seu (curto) relacionamento com o músico Kanye West. “Ele não aguentava quando eu entrava no modo goblin”, ela teria dito. Meses depois, a expressão seria sacramentada como “palavra do ano” pela equipe de linguistas do Dicionário Oxford, que a cada dezembro assinala o termo mais representativo ou que mais bombou no ano que termina. Excepcionalmente, nesta edição foram divulgadas três palavras finalistas para que o público votasse em sua preferida. “Modo goblin” superou “metaverso” e “#IStandWith”, recebendo 93% dos mais de 340 mil votos computados.
A popularidade da expressão e do estilo de vida que ela representa é resultado das muitas condicionantes do período recente, forjado pela Covid-19 e pela proliferação de atos antidemocráticos em diversos países. Os muitos meses de isolamento físico, segundo os linguistas e Oxford, fizeram aflorar instintos e hábitos antissociais que apenas a muito custo serão corrigidos ou superados. Se é que o serão.
Disfarçado de autenticidade, o modo goblin implica um elogio à possibilidade supostamente emancipatória de passar o dia inteiro de pijama e pantufas, determinar os próprios horários e a própria rotina na totalidade do tempo, visualizar e não responder, receber e não agradecer, sumir por semanas sob o argumento de que “não sou obrigada” ou de que “não é ela que paga os meus boletos”, substituir a etiqueta pela empáfia (e toca a assistir às aulas e fazer reuniões com a câmera fechada), trocar as convenções sociais pela arrogância, a polidez pelo individualismo jocoso, sarcástico, niilista.
E o que o modo goblin descreve? “Um tipo de comportamento que é assumidamente auto-indulgente, preguiçoso, desleixado ou ganancioso, geralmente de uma forma que rejeita as normas ou expectativas sociais”, segundo os linguistas.
Pois esse comportamento precisa acabar. Pode ter funcionado para muitos durante os anos de pandemia – e de bolsonarismo no Brasil -, mas precisa ser superado com urgência. A construção do futuro passa pela necessidade da elaboração e da responsabilização coletivas.
Acompanhamos, num passado recente, o elogio hegemônico de uma postura que reivindicava o individual, o autêntico, o “verdadeiro eu”, o essencial na esfera privada. Aprendemos a sutil arte de ligar o foda-se e nos acostumamos a ler diversos palavrões estampados nas capas dos livros, sempre com esse espírito de alforria, de libertação. Já deu. Em 2023, precisamos urgentemente caminhar na direção oposta. Substituir o duende verde que habita em nós por um anão solidário, engajado, justo. Aprender, com urgência e obstinação, a gentil arte de desligar o foda-se.