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Isso nem se discute. Eleito Lula, é dever dos democratas continuar defendendo a democracia, durante a transição e depois da posse do novo presidente, dos ataques bolsonaristas que virão, da parte do governo cessante e, depois, de fora do governo. Serão ataques de uma oposição antidemocrática, que não aceita o resultado das urnas, nega a legitimidade do pleito e, por conseguinte, do próximo governo, em alguns casos alimentando tentativas de golpe de Estado e pregando saidas inconstitucionais para impedir a posse do presidente ou promover a sua derrubada.
Não é dever dos democratas, porém, aderir ao governo ou entrar no governo. Os que quiserem apoiar o governo, podem fazê-lo. Os que não quiserem, podem se opor ao governo, democraticamente. É assim que funcionam as democracias. Governo existe em qualquer regime. Oposição democrática, só nas democracias. Oposição democrática não existe apenas quando o governo é autocrático, quando o governo é ruim, quando o governo precisa ser substituído antes do prazo. Ela faz parte do metabolismo normal das democracias. Não existe democracia sem possibilidade de oposição democrática. Nas democracias liberais – que são regimes plurais – a oposição é tão importante quanto o governo.
Só o nosso profundo e generalizado analfabetismo democrático torna necessária essa explicação. Se o governo foi eleito legitimamente e se comporta democraticamente, cabe à oposição democrática elogiar e apoiar medidas que avalia favoráveis à democracia (e, poder-se-ia acrescentar, ao desenvolvimento humano e social sustentável), criticar medidas que julga desfavoráveis e apontar alternativas. Além disso, tentar substituir o governo eleitoralmente ou segundo a Constituição e as leis, procurando não violar as regras não-escritas da democracia sem as quais não se sustenta qualquer sistema legal.
Isso é bem diferente de uma oposição antidemocrática, que tenta inviabilizar ou derrubar o governo violando a Constituição, as leis e as regras não-escritas da democracia, por meios guerreiros – violentos ou não. Não fosse a precariedade de nossa cultura democrática, seria desnecessário observar que a democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos. Para a democracia a política não é a continuação da guerra por outros meios. A política (democrática) não é guerra e sim evitar a guerra, ficando claro que guerra não é necessariamente violência, não é destruição de inimigos e sim construção de inimigos para instalar um ‘estado de guerra’ que permita a ereção de padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação de conflitos.
Dito isto, passemos ao grande desafio posto aos democratas liberais no próximo período. Em uma pergunta, esse desafio poderia ser definido assim. Como existir num mar onde reinará uma grande baleia (a coalizão das forças governistas, formada por cooptação neopopulista – ainda que disfarçada de “frente ampla”) e um tubarão (o “partido digital” bolsonarista, fazendo uma oposição antidemocrática populista-autoritária)? Qualquer pequeno cardume não-populista será engolido sem grande esforço pela baleia e atacado ferozmente pelo tubarão. Sim, os democratas liberais (para todos os efeitos práticos: os democratas não-populistas) são tomados pelos populistas como seus principais inimigos, digam-se esses populistas de esquerda ou de direita (se é que essas noções ainda fazem sentido).
Em outras palavras: como se comportar democraticamente diante do neopopulismo lulopetista no governo e do populismo-autoritário bolsonarista fora do governo? Não são iguais, não há simetria, mas há isomorfismos entre eles. Os neopopulismos (como o lulopetismo) querem manter as democracias que parasitam como democracias eleitorais, impedindo porém que elas ascendam à condição de democracias liberais (na linha de Chávez, Evo, Correa, Lugo, Funes, Lula, Cristina, Obrador, Zelaya e talvez Petro). Os populismos-autoritários (como o bolsonarismo) querem converter as democracias liberais ou eleitorais que parasitam em autocracias eleitorais (na linha de Orbán, Erdogan, Trump, Putin, Modi). A não ser em casos extremos, em que instauraram ditaduras (como na Venezuela de Maduro e na Nicarágua de Ortega), os neopopulismos costumam ser democráticos (conquanto apenas democrático-eleitorais, quer dizer, não-liberais). Já os populismos-autoritários são autocráticos (conquanto autocráticos-eleitorais – e, portanto, são iliberais).
O fato é que, sem uma oposição democrática, a bipolarização (ou a divisão) da sociedade brasileira continuará por mais quatro e, talvez, oito anos. As enormes tensões que se acumularão em razão desse embate entre ditos progressistas, de um lado e ditos fascistas, por outro, não terão válvula de escape. Dificilmente sairá daí mais-democracia. Mas há um campo para trabalhar uma alternativa democrática não-populista. Nesse campo estão potencialmente: 1) os que votaram em Lula só para remover Bolsonaro; e 2) parte dos que não votaram em ninguém ou até votaram em Bolsonaro apenas para impedir a volta do PT ao governo. Somam mais de 30 milhões de almas.
*Augusto de Franco é escritor e palestrante.
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