Mondaini faz muito bem a sublinhar a importância da “solução chilena” de 1973 para a compreensão da viragem conhecida como “compromisso histórico”, ou seja, a unidade nacional entre os três principais partidos que saíram vitoriosos da resistência, PCI, PSI e DC. Assim escreve Mondaini (p. 44): “Berlinguer captou os sinais provenientes do Chile, vinculando-os a uma precisa análise sobre a conjuntura política que parecia estar em curso na Itália”. Mas não foi só o golpe contra Allende a abanar o mundo comunista daquela época: os “anos de chumbo”, na Itália, já tinham começado, com o atentado de Piazza Fontana, em Milão, a 12 de dezembro de 1969, e com tentativas de golpes de estado de extrema direita em 1964 (“Piano Solo”, liderado pelo General De Lorenzo) e sobretudo em 1974, conhecido como “golpe-Borghese. O Berlinguer que pessoalmente me recordo – mesmo através das conversas que meu pai tinha em casa com minha mãe – era um político, mas sobretudo um cidadão extremamente preocupado com uma situação que podia desaguar no caos institucional e, consequentemente, em soluções ditatoriais. Foi provavelmente por isso que ele apelou para que houvesse uma atenta “vigilância democrática”, que Mondaini recorda em vários trechos do seu livro. Se tratava de defender as conquistas da democracia e da resistência, por isso é que foi necessário alargar a política das alianças até envolver a DC num projeto de defesa da democracia italiana.
Embora criança, lembro-me que em muitos casos os camaradas da base interpretaram o compromisso histórico com fé, mas sem nenhum convencimento político. Provavelmente tem razão Mondaini quando afirma que o compromisso histórico é o filho natural e legítimo da democracia progressiva e da unidade nacional de Togliatti. Porém eu acredito que tal estratégia política sempre ficou na ambiguidade de uma base que formalmente aderiu a este programa de longo prazo, mas sempre esperando pela “hora X”. Quando Berlinguer anunciou o compromisso histórico ficou mais claro mesmo pelas bases mais radicais de que a tática estar-se-ia transformando em estratégia…Mas o pânico não durou muito. As Brigate Rosse, juntamente com pedaços importantes do estado e provavelmente da CIA pensaram bem em eliminar o interlocutor privilegiado de Berlinguer na DC, Aldo Moro, decretando o fim daquela audaciosa tentativa de reconectar as duas tradições principais da resistência italiana, a comunista e a católica, para defender a democracia.
Sem querer entrar nos pormenores do eurocomunismo e de outros momentos marcantes da proposta política de Berlinguer, inclusive das suas ambiguidades bem descritas por Mondaini, quero fazer uma última notação em mérito ao derradeiro período da sua parábola política, de 1980 até o ano da sua morte, 1984. Assim escreve Mondaini (p. 56): “a fórmula do ‘compromisso histórico’ teria sido abandonada por completo das suas intervenções, sendo substituída pela ‘alternativa democrática’ como resposta necessária à resolução da ‘questão moral’”.
Provavelmente foi esta última fase da proposta política de Berlinguer que, hoje, na Itália, ficou como a marca principal deste líder esquivo e brilhante ao mesmo tempo: a sua ética política era irredutível, a sua honestidade fora do tempo, um tempo em que a estrela socialista Bettino Craxi começava a emergir, numa “Milano da bere” que ostentava luxo, lazer e hábitos novos, com um país que acabava de sair dos “anos de chumbo”. E a propósito da ética de Berlinguer quero fechar esta intervenção com mais uma recordação pessoal: estávamos, com a família dele e a minha, esperando pelo barco que, de Livorno, devia levar o secretário do PCI para Portoferraio, na Ilha de Elba, onde ele por vezes costumava passar os seus poucos momentos de férias. Era agosto e a fila enorme, o sol no auge; toda a gente lhe convidou para passar a frente e entrar na embarcação. Berlinguer foi irredutível, nem a intervenção dos seus guarda-costas valeu para o convencer. O líder do Partido Comunista devia estar com o povo e atuar da mesma forma que o povo faz. Ficou (ficamos) na fila durante mais de uma hora, esperando, como todos os outros passageiros, a nossa vez de subir. Provavelmente o maior legado de Berlinguer à ética pública, italiana e internacional foi este, além das ideias, méritos, limitações e contradições propriamente políticas que ele, como todos os que fazem este trabalho, também teve.
Se calhar é justamente este o “valor universal” da democracia berlingueriana que Mondaini abordou nesta sua obra, que vai constituir uma pedra miliar dos estudos sobre o comunismo italiano, não apenas no Brasil, mas a nível internacional.