Três anos separam “Entre Facas e Segredos” da continuação “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, mas a distância entre as produções é maior que a sugerida pelo tempo.
Envolta em burburinho —a Netflix desembolsou cerca de US$ 500 milhões nos direitos da franquia—, como a cebola de vidro do título, as camadas não ocultam o que está no centro. A produção, de novo dirigida e escrita por Rian Johnson, reconhece o intervalo de anos.
É de uma sagacidade interessante, parecida com a que definiu o sucesso do original, que subvertia o gênero do “whodunit” com precisão similar à sátira esperta da elite.
Isso porque, além de situar novos personagens, o extenso prólogo de “Glass Onion” insere elementos que seriam estranhos no longínquo ano de 2019. A pandemia é o gatilho, de piadas básicas com máscaras faciais à montagem de uma ligação em grupo com cenários típicos do período, como o home office com a família, a festa em casa da socialite ou o cientista fazendo pesquisa sozinho.
Nesse meio tempo, o lúdico se reestabelece como elemento literal do tabuleiro. Sabemos logo que os personagens são grandes amigos de um bilionário excêntrico, vivido por Edward Norton, que os convida para sua ilha particular por meio de uma caixa cheia de enigmas.
No convite está uma das duas provocações que disparam a trama. O encontro serve para descobrir quem é o assassino do anfitrião. A outra provocação é que o convite de alguma forma chega ao detetive Benoit Blanc, papel de Daniel Craig, protagonista que nem sequer conhece o ricaço.
Essa premissa não dá conta de 10% do que acontece a seguir. De “Entre Facas e Segredos”, “Glass Onion” mantém intacta a adesão religiosa às histórias de Agatha Christie, partindo do roteiro calcado em reviravoltas complexas que desestabilizam o público.
O desafio de ser uma continuação que almeja repetir efeitos explosivos, porém, leva Johnson a apostar na expansividade comum a franquias. É algo marcado nas locações exuberantes e nas pontas de luxo de celebridades, inclusive de Stephen Sondheim e Angela Lansbury, que gravaram suas participações pouco antes de morrer. Mas é na história que se nota o esforço de se chegar ao mesmo lugar.
Inversões de perspectiva são mais drásticas, idas e vindas no tempo acontecem com frequência e até arquétipos do original se multiplicam no elenco enxuto para criar distrações —Janelle Monáe, Jessica Henwick e Madelyn Cline fazem a posição de Ana de Armas, oprimidas a seu jeito no sistema de classes.
As voltas longas, no entanto, não exaurem tanto quanto ver a que o aparato serve. Com tanto malabar girando, passa batido que o grande truque seja a sensação inicial de que “Glass Onion” tenha por foco a pandemia. Na verdade, se ensaia uma nova crítica contra o mais ricos.
E, de novo, o tempo se manifesta aí. Se em 2019 a sátira era voltada às velhas elites, que apoiavam Donald Trump por afinidade ou cinismo, o espelho da vez se volta aos gurus da tecnologia, encabeçados agora por Elon Musk.
A piada agrada, mas é limitada mesmo nos bons momentos do elenco —Norton se diverte no camaleonismo de milionários célebres, pagando até de Steve Jobs, e Dave Bautista está confortável como avatar de Alex Jones, do Infowars. Por mais esperto que seja o redirecionamento do humor à sanha quase sexual de vender ideias vazias —coroado por um monólogo afiado e mastigado com felicidade por Craig—, o olhar do assunto é apenas conveniente.
A questão é que “Glass Onion” soa diminuído no cenário em que a sátira da elite se converteu em onda, vide o sucesso de “The White Lotus” na TV ou de “Triângulo da Tristeza”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Menos pelas circunstâncias que pelo mérito do discurso, vale dizer, dado que ele acaba vazio e repetitivo fora da percepção das injustiças correntes.
Ao mesmo tempo, a dedicação de Johnson nos pormenores do “whodunit” é o ar de graça que mantém o filme agradável. Com tanto excesso, o desejo puro pela surpresa do espectador é mantido.
Nessas condições, faz sentido que o clímax de “Glass Onion” desperte sensações contraditórias. De um lado, falta significado na resolução superficial da trama; do outro, é inegável o prazer de se ver o quebra-quebra como saída única a um jogo de tabuleiro viciado, sobretudo quando legitimado pelas próprias engrenagens da narrativa.