Pesquisador da ascensão da extrema direita, o professor de ciência política Jorge Chaloub, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirma que os atos antidemocráticos em frente aos quartéis e nas rodovias desde a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) são sintoma de uma sociedade que naturalizou a violência.
Parte dessa naturalização passaria pelo Judiciário, que, segundo ele, errou em incluir as Forças Armadas no processo de fiscalização das urnas, e pela imprensa, que teria resistido em apresentar Bolsonaro como uma figura da extrema direita, colocando-o apenas como à direita de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“A candidatura do Bolsonaro foi naturalizada e acho que essa é uma chave muito importante de ser compreendida. Bolsonaro é o líder do Executivo mais radical que tivemos na nossa história”, diz.
A postura do bolsonarismo, agora, segue elementos clássicos da extrema direita global, segundo ele: teorias da conspiração, apreço pela lógica e estética militares e incapacidade de aceitar a derrota.
As manifestações em frente aos quartéis reúnem vários tipos de discurso, embora o grito de guerra pelas Forças Armadas seja entoado por todos. O que há de coesão nesses atos? Bons pesquisadores da extrema direita brasileira, do fascismo, neofascismo e neointegralismo demonstram que esses grupos já existiam e atuavam, muitos por coordenação na internet. Agora eles se sentiram tranquilos, inclusive incentivados a vir à luz do dia, a ocupar o espaço público para atacar a democracia diretamente.
O eleitorado de Bolsonaro é diverso. Se tivéssemos 58 milhões de figuras afeitas ao fascismo, estaríamos perdidos. Tendo a pensar que nem todas as pessoas que estão acampadas em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, estão dispostas a se engajar num golpe, mas é crucial entender que o Brasil virou um país que normalizou o fascismo e a violência como instrumento de produção da verdade.
O que une essa massa, que a gente não sabe exatamente o tamanho, é identificar o PT como o sistema político como um todo, um sistema apodrecido e corrupto, todo viciado. A urna é viciada porque faz parte desse sistema, assim como a pesquisa eleitoral, o jornalismo e o Judiciário.
O que eles defendem é que não há como reformar esse regime porque ele segue uma lógica conspiratória [contra Bolsonaro] e está apodrecido. Esse regime pode ser reformado por quem? Por alguém que o coloque um pouco abaixo e proponha um novo regime. Quais seriam as instituições que, talvez pela vinculação com o Bolsonaro e com 64, poderiam fazer essa operação? As Forças Armadas.
Qual sua avaliação sobre o papel do Judiciário e da imprensa diante dessas manifestações? Como tratar o atual momento sem legitimar o golpismo ou minimizá-lo? Gostaria de voltar um pouco. Num primeiro momento, a candidatura do Bolsonaro foi naturalizada e acho que essa é uma chave muito importante de ser compreendida. Bolsonaro é o líder do Executivo mais radical que tivemos na nossa história. Mesmo as figuras da frente da ditadura militar não defendiam a tortura publicamente. O regime militar torturou, mas você não ouviu Geisel e Médici falando que a tortura era tolerável.
Bolsonaro ultrapassou várias linhas e, num momento inicial, tanto a mídia como o Judiciário o trataram sob a ideia de que era uma retórica de campanha, que talvez não houvesse adesão a essas ideias, que ele atuaria de um modo distinto, que teria alguma dose de autocontenção. Só que Bolsonaro não tem autocontenção, ele avança cada vez mais.
Durante esses anos, a gente teve um cenário de normalização de perspectivas diretamente antidemocráticas: defender tortura, defender agressão de opositores e pensar em opositores como inimigos ilegítimos a serem exterminados. Bolsonaro construiu isso desde o início, não apenas ele, mas várias figuras que operavam como uma direita democrática num campo conservador desde 1988. O que estamos vendo agora, depois da eleição, é consequência desses anos.
Como se poderia não naturalizar uma candidatura oficial? O debate sobre a terminologia de classificar Bolsonaro é importante, por exemplo. Houve muita resistência em classificá-lo como uma figura de extrema direita. A imprensa francesa sempre tratou a Marine Le Pen como tal, não seria uma grande inovação. Os principais veículos do Brasil resistiram a mudar o pensamento de que Bolsonaro seria uma contrapartida de Lula à direita e a abandonar certas falsas simetrias. Na eleição, no pós-pandemia, isso mudou.
O Judiciário também ficou muito titubeante. O ministro Luís Roberto Barroso aceitou que os militares fossem parte de um processo de fiscalização nas urnas. Isso é desvio de finalidade dos militares, não deveria ser tolerado.
Do ponto de vista da mídia, eu penso que é preciso deixar muito evidente o quanto isso é intolerável em qualquer ideia de democracia que a gente tem disponível no debate público do pós-45. Mas eu também acho que a mídia tem que conseguir compreender o tamanho desses atos. A dimensão do povo na rua é muito distinta da dimensão do povo nas urnas. Como esses espaços estão muito próximos, é muito tentador você pensar que essas pessoas da frente do quartel representam 58 milhões de eleitores, mas não. Dificilmente esses grupos elegeriam um deputado do Rio. O risco que representam é gerar um efeito de intimidação, linchamento, violência.
No ato de 15 de novembro em São Paulo, parte do público era formada por casais de idosos, aparentemente de classe média e classe média alta. Pode haver certa nostalgia da ditadura nesse público? Quem entender completamente o que está acontecendo está, no mínimo, muito otimista. Mas a questão da nostalgia aparece muito na bibliografia dos Estados Unidos, sobretudo como traço da extrema direita. É uma ideia de reação à mudança, sobretudo à mudança proposta pela nova esquerda, que colocou em questão a ideia de família tradicional, a desigualdade de gênero, os padrões de sexualidade.
É o desejo de voltar a um passado imaginado. O reacionário se nutre de uma memória cultivada, de uma memória de quando se era mais feliz. Mas tem que ficar claro que eles não querem reconstruir a ditadura militar tal como ele era, mas como eles imaginam que era.
E a atual posição de Bolsonaro, como o sr. interpreta? A militância tenta decodificar seu silêncio e ler possíveis sinais que ele emite. Essa leitura é algo que não passa só por ele, a recorrência a teorias conspiratórias é uma marca da extrema direita global. Olavo de Carvalho teve um papel muito central de construir uma grande narrativa conspiratória e de tornar a retórica da conspiração algo do dia a dia.
A estrutura de uma teoria da conspiração, por definição, não pode ser questionada, digamos, por um debate normal. Se eu falo para você uma grande teoria e você não acredita, facilmente se encaixa como ingênuo ou cúmplice. Como o conspiracionismo lida com o que há de oculto, você sempre pode aumentar o que não é visto. Se o Bolsonaro falasse que “as urnas estão corretas” seria um baque, mas não impediria que alguns dissessem “Bolsonaro lá atrás deu sinais que era para a gente interpretar o contrário do que ele falou”.
Fiz um acompanhamento muito longo de falas do Bolsonaro e é impressionante que, mesmo quando era um deputado lateral, sempre teve um imaginário militarizado do golpe, da insurreição. Hoje ele sabe que é um presidente derrotado e que não tem as condições materiais para isso. Ele quer que haja movimentos espontâneos pela liderança dele. Assim que eu interpreto.
Há paralelo desses atos com outros após eleições? O questionamento das urnas tem muita semelhança com o que aconteceu depois da eleição de Joe Biden. Muitos dos que invadiram o Capitólio também tinham lógica e uma estética militarizada. Acho que o imaginário do Capitólio é presente.
Só que a postura do Exército americano foi uma postura de condenação veemente de manifestações antidemocráticas e de defesa veemente da validade das eleições. Não teve nenhum general falando algo dúbio. Isso nos distingue muito, o que é preocupante, não a curto prazo, mas no horizonte.
Raio-X
Jorge Chaloub, 38, é doutor em ciência política pelo IESP-UERJ, com doutorado-sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. É pesquisador das direitas brasileiras após 1945.