Na cena inicial de “Até os Ossos”, uma adolescente foge de casa durante a noite para encontrar amigas em uma festa do pijama. Confidenciando para a amiga seus problemas com o pai controlador, Maren —vivida por Taylor Russell— exprime o desejo de poder se libertar do controle parental e conhecer o mundo.
A tensão homoerótica da cena cresce conforme a amiga mostra a nova cor de esmalte para Maren, que logo coloca gentilmente os dedos da colega na boca, antes de morder com força e arrancar metade do seu mindinho —para o desespero de todas as amigas na sala. Sangue, tecido, gordura e ossos se misturam com emancipação e formação sexual no novo filme de Luca Guadagnino.
Depois do incidente, descobrimos que Maren tem arroubos canibais desde a tenra idade. A cada incidente, seu pai foge com ela para outra cidade na esperança de poderem viver uma vida normal, na esperança de que essa peculiaridade inata da filha se dissipe na experiência cotidiana do Meio-Oeste oitentista americano.
Mas a sua fome só pode ser reprimida até certo ponto. Quando a condescendência do pai também apresenta um limite, Maren está sozinha no mundo. Resta a ela seguir pelas estradas atrás da mãe, talvez a única pessoa que realmente entenda o que ela carrega dentro de si e não consegue controlar.
É na busca por respostas da sua origem que Maren descobre não estar sozinha. Ela é uma “comedora”, alguém que tem fome de carne humana e precisa se educar entre os seus se quiser sobreviver e saciar seu desejo.
Depois de um encontro inicial com uma nova figura paterna, Sully —vivido por Mark Rylance— Maren esbarra em Lee —vivido por Timothée Chalamet— e é nesse encontro que os temas de amor de
formação explodem na tela.
Tomando como base estética o romance e exploração da natureza de “Terra de Ninguém”, de Terrence Malick, Guadagnino filma o casal se desenvolvendo entre lindos vales do Meio-Oeste americano, banhados pela luz crepuscular púrpura remanescentes de uma fotografia do Gregory Crewdson.
A beleza natural se contrapõe ao horror canibal, enquanto a pureza do primeiro amor enfrenta as agruras do crescimento. A beleza do filme se encontra no equilíbrio entre esses temas, mas o desenvolvimento dessas esferas nunca parece chegar em algum lugar ou ultrapassar essa tentativa inicial de equilíbrio.
Marginalizados, mas especiais, os dois protagonistas seriam signos da emancipação queer da época, ou mesmo sobreviventes da epidemia de Aids que começava a assolar o mundo.
As metáforas ficam no ar, mas de forma mais desconjuntada do que sutil. Muito dessa exploração rasa pode vir do material original.
“Até os Ossos” é baseado em um romance “young adult”, gênero literário baseado no desenvolvimento simples de temas que à primeira vista parecem maduros. São, como anuncia a sua própria nomenclatura, livros infantojuvenis para “jovens adultos” —aqueles que estão começando a pagar as primeiras
contas sozinhos, mesmo em estado de negação.
O resultado final do filme de Guadagnino, não foge muito da sua fonte. Um excesso de esmero visual para camuflar uma exploração pobre de temas complexos. O amor, a distinção, a marginalidade e a formação são mastigados como o sangue, o tecido, a gordura e os ossos. O resultado é indigesto. O período mais “gore” da vida, a adolescência, passa batido entre as vísceras na tela.