Os desafios da área social do próximo governo Lula mostram que o debate público sobre temas como educação, saúde e assistência social mudou tanto no conteúdo como na forma.
O presidente assumirá um país com mais fome e menos analfabetismo, por exemplo, do que quando tomou posse em 2003. Com menos mortalidade infantil, ainda que significativa, e uma visão mais complexa sobre políticas públicas.
Novos atores ganharam força na análise e implementação de programas, em especial entidades do terceiro setor já representadas na transição.
Algumas visões de parte da esquerda, por sua vez, perderam espaço em um campo político que, em 13 anos de poder, ganhou uma dose de pragmatismo ao pensar políticas públicas, ainda que com erros e contradições.
Um dos debates que pegava fogo no início do primeiro governo Lula e hoje é praticamente lateral é o da escolha entre políticas focalizadas e universais.
Em linhas gerais, os adeptos da focalização defendiam ações voltadas especificamente a determinados públicos, como os mais pobres. Já alguns petistas históricos viam nessa abordagem um ensaio de ataque a políticas universais, como as de saúde e educação.
“Foi algo que me surpreendeu, porque me parecia algo muito natural. O Brasil não é um país rico, e as políticas sociais precisam cuidar dos mais vulneráveis”, diz o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper e colunista da Folha.
Ele era secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda em 2003, quando foi publicado um documento que expunha suas ideias de ajuste fiscal e focalização.
“Quase tive um ataque quando li aquilo”, declarou à época a economista Maria da Conceição Tavares.
Mas não eram só os liberais da equipe econômica que defendiam a focalização.
Em artigo publicado em 2003 no portal Geledés, a filósofa e ativista do movimento negro Sueli Carneiro afirmava que “a defesa intransigente das políticas universalistas no Brasil guarda, por identidade de propósitos, parentesco com o mito da democracia racial”.
“Ambas realizam a façanha de cobrir com um manto ‘democrático e igualitário’ processos de exclusão racial e social que perpetuam privilégios.”
Essa visão ganhou ainda mais força em anos seguintes, com a disseminação de ações afirmativas.
“É preciso que os indicadores sociais melhorem como um todo, mas de forma mais veloz para os mais vulneráveis, e isso se faz com políticas focadas”, diz Ricardo Henriques, que na gestão Lula esteve no MEC e no Ministério de Desenvolvimento Social, onde atuou no desenho do Bolsa Família.
Hoje superintendente-executivo do Instituto Unibanco, ele aponta que a visão sobre algumas questões sociais ficou mais complexa desde então.
Exemplos disso são a educação, que passou a incorporar a dimensão de bem-estar, e a alimentação, cuja análise dá a mesma prioridade à quantidade calórica e à qualidade.
Segundo pesquisa divulgada em junho deste ano pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), 15,5% da população passava fome naquele mês. Em 2004, no segundo ano de Lula, dado similar da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) indicava um patamar de 9,5%.
“Hoje vivemos uma crise de fome com obesidade. Não é uma contradição, é um sinal de que as crianças estão sendo pessimamente alimentadas”, diz Henriques. Para ele, recompor os valores para merenda escolar deve ser uma prioridade do governo eleito.
Professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Universidade Federal da Bahia), Dandara Ramos ressalta que o olhar para o combate à fome vai ter que encarar um cenário diferente do visto no início da década passada.
“O Brasil não tem só aquele perfil típico de manchete do Jornal Nacional, com criança desnutrida no Nordeste. Temos também um problema imenso nas grandes metrópoles”, diz.
Ela aponta também que o país terá que lidar ainda com uma herança de desmonte em ações que estavam consolidadas, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Para Dandara Ramos, a recomposição do programa será chave para acelerar a redução da mortalidade infantil no país.
Outras medidas que ela elenca como fundamentais para esse objetivo são o fortalecimento do Bolsa Família, o monitoramento das condicionalidades do programa e o fortalecimento da rede de assistência social.
Na educação, a mudança de prioridades e de visão sobre política pública é visível, a começar pela equipe de transição, com presença de representantes de entidades do terceiro setor ligadas ao empresariado.
Ao longo dos últimos anos, muitas delas ganharam protagonismo, financiando e dando apoio técnico a políticas nos estados e municípios e atuando também no Congresso.
“Governos não têm anos para estudar experiências de outros lugares, por exemplo. Muitas vezes operam na lógica de urgência. A sociedade civil como um todo deve contribuir com subsídios”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo do Todos Pela Educação.
Por outro lado, a sustentação de um bom projeto educacional, diz, depende mais da política do que da técnica, porque é necessário convencer os atores envolvidos, articular e mobilizar.
Na área, um tema que perdeu espaço no debate público foi o combate ao analfabetismo de jovens e adultos.
Para cumprir a ousada meta de erradicar o problema em quatro anos, o primeiro titular do Ministério da Educação, Cristovam Buarque, defendia um engajamento de toda a sociedade para formar rapidamente alfabetizadores e abrir massivamente turmas.
Cristovam saiu, o programa Brasil Alfabetizado, que já patinava, teve resultados tímidos, e o tema perdeu espaço de vez na pauta após a gestão Temer (MDB).
O analfabetismo persiste, mas hoje é menos da metade do que era há 20 anos, seja pelos programas federal e estaduais, seja por questões demográficas.
A taxa de pessoas de 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever era de 5% em 2021.
Para Nogueira, a redução ajudou a mudar o foco, e outro fator foi um melhor diagnóstico de outros problemas —o que não deixa de ser fruto de outra mudança na forma de ver política pública.
Tidas por parte da esquerda como frutos de uma lógica mercantil na educação básica, as avaliações não só continuaram sob o governo Lula como foram ampliadas.
Elas permitiram um diagnóstico mais preciso de outros problemas que viraram prioridade na área, como a alfabetização das crianças. Além disso, facilitaram o reconhecimento de gestões estaduais e municipais exitosas.
“Em 2002, não tínhamos nem o exemplo de Sobral”, diz Nogueira, citando a cidade cearense que virou referência em educação.
Ele ressalta que também o financiamento da educação básica mudou de patamar, o que muda a cara do desafio. Se, no início dos anos 2000, o valor mínimo por aluno era abaixo de R$ 1.000, em valores corrigidos, hoje está próximo de R$ 4.000 e, com o novo Fundeb, deve chegar a R$ 6.000.
“Em 2002, não cabia a história de que ‘o problema é gestão’”, diz. “Com aquele quadro de financiamento, na maioria das regiões era impossível fazer educação de boa qualidade. O quadro mudou.”