Tempos atrás orientei uma pesquisa que tentava descobrir como uma psicanálise feita na infância deixa seus traços na vida adulta [1].
Mas para nossa surpresa, ao escutarmos as lembranças de uma análise ocorrida há vinte ou trinta anos, não encontrávamos testemunhos das intervenções da analista, lembranças de como o sofrimento mudou ou rastros de sintomas que persistem na história das pessoas.
Em vez disso, as memórias de uma experiência assim intensa retinham pequenos traços de uma situação intensa, que podia ter se estendido por meses e até mesmo anos, envolvendo um encontro inusitado no qual uma criança pode falar ou brincar livremente com um adulto, de modo a encontrar as palavras que a habilitem a enfrentar seus conflitos.
Mas depois de tudo, sobravam coisas como “tinha um portão gigante”, “eu ia com uma malha de lã que pinicava”, “uma vez ela chamou minha mãe para conversar” ou até mesmo “a voz dela era muito diferente”.
Como tudo o mais que sobrevive à amnésia que recai sobre nossa infância, tais fragmentos esparsos e desconexos parecem comprimir um conjunto difuso de afetos. Na verdade, é como se quanto menor for a lembrança, maior a carga de emoção que ela carrega.
Muitas vezes, quando encontramos aquela boneca velha ou aquele carrinho quebrado, que sobrou no fundo de uma caixa perdida, ele traz de volta um mundo que não sabia que carregávamos dentro de nós. Assim também as lembranças da análise eram acompanhadas de comentários como “nem lembro da cara dele” ou “não sei dizer se estava com oito ou onze anos”.
São como pequenos marcos que sintetizam situações complexas e indiscerníveis como: “meus pais estavam se separando”, “mudamos de casa”, “minha avó estava muito doente” ou mais simplesmente “estava completamente perdido na escola, chorava toda hora sem saber porquê”.
Ora, a relação entre este traço único, mas aparentemente aleatório, como o cheiro do avental que ela usava e a situação particular no interior da qual este traço se localiza, como o contexto escolar ou familiar, é atravessado por grandes marcos da memória social.
Tais monumentos pessoais de memória são muito importantes, pois eles indicam que a vida não termina naquele drama fechado, circular e tendente ao infinito onde a briga do casal nunca termina, a pobreza não acaba e a escola é sempre aquela agastura.
Ou seja, há alguns momentos nos quais o mundo se alarga, e temos a sensação de que ele é maior do que nós mesmos. Nestes momentos, o sentido de “todo mundo” supera a prisão de nosso inferno particular.
Para alguns, esta experiência está ligada ao intenso inédito: a primeira vez que vi o mar, a primeira vez que andei de avião, ou simplesmente o primeiro beijo.
Para outros, isso vem junto com descobertas que abrem precedentes terríveis —quando minha tia morreu ou quando perdi meu gato de estimação—, abrindo a terrível hipótese de que tal acontecimento poderia ocorrer com outras pessoas… eventualmente comigo mesmo.
Processo análogo também acontece com nossa memória “tecnológica”: a primeira televisão a cores, comprada para a Copa de 74, os filmes que chegavam dois dias depois na Copa de 58, o Canal 100 trazendo os lances no cinema nos anos 80, os telões e bares dos anos 2000.
Os cenários, como vimos, são decisivos para a compactação da experiência. Eles associam o conteúdo (vitória ou derrota) com a forma da experiência (onde você estava em cada jogo) formando um sabor ou uma atmosfera de memória única.
A tarefa de se produzir uma história que torne a nossa biografia minimamente organizada é muito mais difícil do que parece, pois é impossível, e talvez indesejável, já diria Funes o Memorioso [2], de Jorge Luís Borges, lembrar tudo.
Portanto precisamos esquecer para lembrar melhor, e depois aprender a descompactar a memória quando necessário.
Neste processo tornam-se marcantes os momentos de mudança, mais do que os de permanência. Por isso, anos como os da pandemia tendem a serem lembrados difusamente ao passo que o dia em que chegamos naquela nova empresa fica gravado para sempre.
Para tanto as testemunhas são cruciais. Por exemplo, viajei com minha esposa para muitos lugares do mundo. De vez em quando ela traz uma lembrança que estava completamente inacessível para mim. Apesar disso, sei reconhecer exatamente a veracidade e factualidade do ocorrido. Ou seja, há lembranças profundas e decisivas, dentro de nós, às quais só temos acesso por meio dos outros, e assim reciprocamente.
Chegamos assim à Copa do Mundo. Ela é um repositório infinito deste tipo de lembrança acumulada.
Acontecendo apenas de quatro em quatro anos, ela funciona como marcador espacial dos territórios aos quais pertencemos.
Por exemplo: “minha primeira Copa”, significa que eu já estava vivo em 1970, (a maior de todas), mas só me lembro através dos outros.
Da de 1974 resta a imagem marcante de meu avô esmurrando a velha cadeira de balanço, quando ainda morávamos em Porto Alegre, porque a Alemanha tinha perdido outro gol, contra a “outra” Alemanha (DDR).
Em 1978, a vida já era outra e o futebol também. Aqui paira uma bruma de injustiça e violência, entre a entrada cavalar de Chicão contra a Argentina e a derrota comprada ao Peru.
Diferente de 1982, onde as ruas, pela primeira vez, foram pintadas de verde e amarelo, para depois escorrerem lágrimas azuis de Paolo Rossi.
Entre 1986 e 1994, foi se criando um ritual de reunir pessoas na minha casa para ver a Copa. Lembro-me de forma difusa, dos pênaltis e mais pênaltis perdidos, das velas acesas por ateus contumazes, dos barulhos da rua. Lembro da inesquecível pergunta de uma amiga, capaz de revelar toda a improbabilidade de encontros gerada pela Copa, afinal: “quantos pontos vale um pênalti?”
Depois disso, lembro de estar perdido no meio do deserto da Namíbia, descobrir que o jogo do Brasil era naquele dia e ter sido misericordiosamente acolhido no acampamento dos guias africanos, no “meio do nada”, torcendo contra o México.
Lembro de comemorar campeonatos na rua com meus filhos.
A Copa é como o Natal, mas com uma diferença crucial. No Natal, temos sempre mais ou menos as mesmas brigas e mais ou menos o mesmo “terrivelmente feliz Natal”. Na Copa, ao contrário, há decepções inesquecivelmente vividas —como o 7 a 1 para a Alemanha— misturadas com os inesquecíveis momentos não vividos —como a derrota dos vira-latas para o Uruguai em 1950.
Há também os improváveis Romários, Ronaldos, Taffareis, Amarildos e Josimares que entram e saem da história, criando memórias de risco e acontecência insubstituíveis. A bola lazarenta nas costas de Carlos, o passe errado do Cerezo, o gol não acontecido de Pelé contra a Tchecoslováquia, a lembrança racista do erro do Bigode.
Portanto, quando sentimos aquele sabor amargo do gol que não sai contra a Suíça ou quando Richarlison “acha” aquele sem-pulo seco contra a Sérvia, não é só o sabor de mais um peru natalino ou argentino que é revivido. É um momento decisivo único que entra na série histórica de nossos futuros contingentes.
Estes são os brinquedos que devemos levar naquela mesma caixa perdida quando mudamos de casa.
Estes são os momentos decisivos de devemos lembrar em uma análise e que também, posteriormente, devemos lembrar depois de uma análise
Estes pequenos fragmentos que nos lembram que tudo poderia ter sido diferente. Se tudo poderia ter sido diferente antes, isso pode ser diferente agora e depois novamente uma vez mais no futuro.
Se Courtois não tivesse defendido aquela bola de Neymar na Copa passada, nós poderíamos ter sido campeões. Mas não fomos. Nisso nos lembramos que o passado terá sido aquilo que fizemos hoje de nosso futuro. Nisso encontramos, em nós mesmos, não apenas nos jogadores que encenam nossas fantasias, a pequena diferença que faz diferença e dá o sabor da vida.
REFERÊNCIA
[1] Maria Letícia de Oliveira Reis (2020) Infância e memória: histórias de psicanálise com crianças. Curitiba: CRV.
[2] Borges J.L. (1994) Ficções. Rio de Janeiro: Globo.