A apresentação ao Congresso pela equipe de transição do futuro governo Lula da proposta de PEC (Proposta de Emenda à Constituição), na noite desta quarta-feira (16), já tinha causado repercussões negativas nos mercados ao longo dia. O Ibovespa, principal índice da Bolsa, recuou 2,5%, e a cotação do dólar subiu 1,8%, para R$ 5,40.
Com a constatação de que a licença para furar a regra do teto de gastos chegaria, em 2023, perto de R$ 200 bilhões, dos quais R$ 175 bilhões seria o montante necessário para cumprir a promessa de manter transferências de renda de R$ 600 mensais, acrescidos de R$ 150 por criança pequena, os pregões abriram em novo estresse nesta quinta-feira (17). Nos primeiros movimentos do dia, A Bolsa já abriu em queda forte de 2,5%, enquanto a cotação do dólar avançava quase 2%, aproximando-se de R$ 5,50.
Repetia-se o ocorrido há uma semana, quando as cotações, nos principais mercados de ativos, derreteram em reação a um discurso do presidente eleito Lula a aliados, em que indicava prioridade de seu governo com gastos sociais e relativizava regras de controle fiscal. Lula afirmou que gastos públicos com transferências de renda, assim como com educação e saúde devem ser entendidos como investimentos, não como despesas.
Foi uma queda de braço, na qual Lula procurou testar limites de sua pretendida política social, recebendo como resposta do mercado a indicação de que a regra de convivência com ele será de desconfiança. O presidente eleito sabe disso, como comprova uma declaração em reunião com representantes de entidades civis brasileiras, ainda no âmbito da COP27, que se realiza no Egito. “Se eu falar isso [furar o teto de gastos em benefício de programas sociais], vai cair a Bolsa, vai aumentar o dólar? Paciência”, disse Lula.
Fora dos pregões, economistas de viés mais ortodoxo, inclusive alguns apoiadores liberais da candidatura de Lula, mostraram-se incomodados com o que entenderam ser indicação de que o novo governo pretendia expandir gastos sem se preocupar, como deveria, em evitar descontroles nas contas públicas. O ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, e a responsável por privatizações nos governos FHC, Elena Landau, por exemplo, vieram a público para externar descontentamento.
Ambos são influentes vozes do mercado e refutaram as afirmações de Lula, com o mote de que responsabilidade fiscal beneficia os pobres. Foram seguidos por um grupo de economistas de bancos e consultorias financeiras.
Não há dúvida de que aumento sem limites de gastos públicos prejudica os mais pobres. O roteiro que leva a essa situação indesejável passa por um aumento da dívida pública, como reflexo do incremento de gastos sem compensações nas receitas.
Neste ambiente, pressões inflacionárias se avolumam e, não só para conter a alta de preços, mas também por necessidade para rolar a dívida encorpada, as taxas de juros sobem. Assim, a atividade econômica tende à contração, afetando, negativamente, o emprego. Não só pobres, mas principalmente eles, são prejudicados.
Ocorre que também não há dúvida de que a solução proposta para evitar os desequilíbrios e prejuízos do aumento sem sustentação de gastos públicos prejudica os pobres. Cortar despesas, e, mais ainda, limitá-los a regras de controle fiscal rígidas, como é o caso do teto de gastos, também acaba prejudicando os pobres.
Foi o que se viu, nos cinco anos de vigência do teto de gastos até agora. Calcula-se que, nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, o teto de gastos foi furado em quase R$ 800 bilhões. Mesmo com a aprovação de sucessivas PECs (Propostas de Emenda à Constituição), para furar a regra, os volumes de recursos para saúde, educação e outras áreas sociais sofreram cortes. Na proposta orçamentária para 2023, programas sociais como o da merenda escolar e o Farmácia Popular, entre outros, sofreram cortes drásticos..
Transformado em peneira, tantos os furos que acumulou, o teto de gastos é uma regra de controle que concretiza a ideia de que a austeridade fiscal beneficia os pobres. A teoria econômica que o inspirou, a da “contração expansionista”, chegou a ser vista com inovadora quando a economia global enfrentou a crise de 2008, mas, com o passar do tempo e a falta de confirmação de seus pressupostos pela realidade, foi sendo abandonada. Até seu principal autor, o economista Alberto Alesina, de Harvard, já falecido, terminou por relativizar o valor da teoria.
A lógica da “contração expansionista” se amarrava a um circuito virtuoso que começava com cortes de gastos, indicando intenção de conter desequilíbrios fiscais e, consequentemente, trajetórias ascendentes da dívida pública. Essas indicações teriam o poder de recuperar a confiança de empresários e investidores naquela economia e, assim, com mais investimentos, haveria expansão do emprego, do consumo e, no fim do roteiro, da atividade econômica.
Na contramão do estabelecido até então pela teoria econômica, a contração e não o aumento de gastos públicos promoveria a expansão da economia. Mas a verdade é que a refutação da formulação pioneira de Keynes, considerado o mais influente economista do século 20, não se confirmou. A confiança prometida ficou a desejar. Como ironizava, entre outros, o economista Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, a fada da confiança não compareceu.
No Brasil, porém, seguindo uma implacável máxima do jornalista e escritor Millor Fernandes, a “contração expansionista”, que deu sustentação ao teto de gastos, continua firme e forte. Como se constata com a popularidade entre economistas ortodoxos da formulação segundo a qual cortes e controles rígidos de gastos beneficiam os pobres. Millor observava que, quando as ideias ficavam bem velhinhas lá fora, elas chegam ao Brasil. Foi o caso do teto de gastos.
Sob o pretexto de conter a dívida pública brasileira, já muito elevada para os padrões dos países de renda média, como o Brasil, o teto de gastos era, na verdade, um esforço para reduzir o tamanho do Estado, cortando também suas obrigações sociais. A ideia era equilibrar as contas públicas e abrir espaços para o setor privado investir, impulsionar a economia e melhorar o bem-estar da população.
Extremamente rígido, o teto de gastos adotado é uma jabuticaba. Nenhuma outra economia, entre as que adotam tetos de gastos como regra de controle fiscal, é tão engessada quanto o teto brasileiro. Nenhuma dotou a regra de força – e rigidez – da inserção no texto constitucional. Daí a profusão de emendas constitucionais necessárias para fazer frente a situações imprevistas, como foram, por exemplo, os produzidos pela pandemia de covid-19.
Numa sociedade com imensos níveis de pobreza e abissais desigualdades, é pedir muito do setor privado que promova apenas por sua conta mitigação consistente dessas falhas sociais. Não era preciso uma pandemia para mostrar que o teto de gastos era politicamente inviável. Mas a pandemia, auxiliada pelos esforços eleitoreiros do presidente Bolsonaro, acelerou a desmoralização do teto de gastos.
Não há incompatibilidade entre responsabilidade social e responsabilidade fiscal, como defende, entre outros, o economista Persio Arida. Arida faz parte da equipe de transição na área de economia, podendo-se imaginar que esteja formulando políticas capazes de assegurar a compatibilidade entre as duas necessidades – atender às obrigações sociais, mantendo as contas públicas administráveis e controladas.