Pode o desejo incontrolável de comer grande quantidade de comida ter origem num circuito cerebral comprometido? Se fosse este o caso, as pessoas que vivem com transtorno de compulsão alimentar periódica —um diagnóstico psiquiátrico— não seriam culpadas por comer demais, não mais que um paciente com a doença de Parkinson é culpado por seus tremores.
Essa pergunta levou médicos a experimentar um tratamento novo, diferente de qualquer outra coisa já tentada para ajudar pessoas com esse transtorno alimentar comum, mas subnotificado. Pelo menos 3% da população o tem, segundo o neurocirurgião Casey Halpern, da Universidade da Pensilvânia.
Halpern e seus colegas decidiram tentar usar a estimulação cerebral profunda, método utilizado rotineiramente para conter os tremores de pacientes com Parkinson. Ela envolve a colocação de eletrodos no cérebro para regular sinais aberrantes. Os fios conectados aos eletrodos são posicionados sob o couro cabeludo, onde ficam invisíveis. Para o tratamento da compulsão alimentar periódica, o dispositivo só estimula neurônios quando detecta um sinal para iniciar um episódio de alimentação compulsiva.
Financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA e publicado este ano no periódico Nature Medicine, o estudo piloto envolve duas mulheres e será ampliado em alguns meses para incluir quatro outras pessoas com compulsão alimentar periódica que recuperaram o peso perdido após cirurgia bariátrica. Para que o tratamento possa ser aprovado pela FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos), os pesquisadores precisarão testar o método rigorosamente com pelo menos cem pessoas em vários centros médicos. Um estudo desse tipo levaria alguns anos para ser concluído.
As duas mulheres que tiverem o dispositivo implantado um ano atrás serão acompanhadas por até três anos. Elas tiveram a opção de ter o dispositivo removido após 12 meses, mas ambas optaram por mantê-lo porque agora não sentem mais o desejo irresistível de comer compulsivamente.
Uma delas, Robyn Baldwin, 58, de Citrus Heights, Califórnia, se descreveu como uma “criança gorducha” que “sempre foi obesa”. Ela experimentou dietas de vários tipos —uma vez, passou um mês alimentando-se apenas de shakes de proteínas.
Em 2003 ela fez cirurgia bariátrica, que normalmente envolve uma modificação do sistema digestivo para reduzir o tamanho do estômago e dificultar a digestão dos alimentos. A cirurgia permitiu que muitas pessoas perdessem peso quando outros métodos haviam falhado. Mas Baldwin recuperou o peso que perdera com a cirurgia.
Lena Tolly, 48, a outra paciente do estudo, vive em Sacramento, Califórnia. Ela também tentou grande número de dietas e tratamentos para a obesidade. Quando concluiu a faculdade, seus pais lhe deram como presente de formatura uma estadia de um mês num centro vegano e, enquanto esteve ali, ela caminhou 16 km por dia.
Em agosto de 2005, Tolly fez a cirurgia bariátrica. Perdeu 45 quilos, mas recuperou o peso pouco a pouco. “Não pode ser apenas questão de força de vontade”, ela comentou.
Em seu caso e no de Baldwin, realmente não era. A compulsão alimentar periódica das duas não é o que a maioria das pessoas chama de comer compulsivamente —como quando começam com um saquinho de batatas chips ou um litro de sorvete e então continuam a comer.
Em vez disso, a condição delas é descrita no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e envolve episódios de alimentação compulsiva várias vezes por semana. Esses episódios são acompanhados por uma sensação de quase encontrar-se em outro estado, no qual perdem todo o controle e consomem grandes quantidades de comida em pouco tempo. Constrangidas por seu próprio comportamento, muitas pessoas comem em segredo. É comum sentirem nojo e vergonha quando o episódio termina.
Halpern liderou o experimento piloto com Baldwin e Tolly. Mas, primeiro, ele e seus colegas experimentaram com camundongos propensos à obesidade. Os animais haviam sido alimentados, mas, quando os cientistas colocaram manteiga em sua gaiola, eles a devoraram, consumindo mais de 25% de suas calorias diárias em uma hora.
A área do cérebro dos animais que fora ativada era o núcleo accumbens, um foco importante do centro cerebral de recompensas, localizado em um ponto profundo do centro do cérebro. Nos camundongos, neurônios no núcleo accumbens ficaram ativos logo antes de um episódio de alimentação compulsiva. Quando os pesquisadores usaram estimulação cerebral profunda para acalmar esses neurônios, puderam impedir os camundongos de comer compulsivamente.
Mas será que o método funcionaria com humanos?
O grupo de cientistas começou a publicar anúncios pedindo a participação de pessoas que haviam recuperado o peso perdido após uma cirurgia bariátrica. Pensaram que a recuperação do peso poderia ser causada pelo transtorno de alimentação compulsiva periódica.
Baldwin e Tolly responderam aos anúncios. Nenhuma das duas tinha consciência de ter o transtorno. Mas a alimentação compulsiva periódica “é realmente muito comum em indivíduos que se candidatam à cirurgia para perda de peso”, disse a psicóloga Lauren Breithaupt, do Massachusetts General Hospital, que estuda transtornos alimentares.
Quando Baldwin e Tolly encontraram Halpern, ambas pesavam mais do que antes de suas cirurgias bariátricas.
Os pesquisadores registraram impulsos elétricos nos núcleos accumbens das duas mulheres quando elas comiam, determinando que os neurônios eram ativados logo antes do episódio de alimentação compulsiva e que esses impulsos elétricos estavam correlacionados ao sentimento de perda de controle das mulheres. Um estimulador cerebral direto talvez pudesse interceptar os sinais e impedir que as mulheres sentissem vontade de comer compulsivamente.
Depois de ligar os dispositivos nos cérebros das mulheres, os pesquisadores disseram a Baldwin e Tolly que ativariam os dispositivos em algum momento nos próximos dois meses, mas não diriam a elas quando. As duas mulheres disseram que perceberam imediatamente quando os dispositivos foram acionados. De repente elas deixaram de sentir desejo incontrolável de comer.
Agora o peso de ambas está baixando lentamente. As duas pacientes disseram que, sem pensar ativamente sobre isso, estão mudando seus padrões de alimentação.
“Não é autocontrole”, disse Tolly. “Simplesmente estou fazendo escolhas melhores.” Mas ela não começou a consumir alimentos dos quais nunca gostou. “Não comecei a comer couve”, disse.
Baldwin também contou ter observado uma mudança em suas preferências alimentares. Ela antes adorava manteiga de amendoim, que comia às colheradas diretamente do pote. Agora, não sente mais esse desejo.
“Eu tinha uns hábitos como estar indo à farmácia comprar um remédio, mas fazer uma parada antes para tomar um sorvete”, ela contou. Uma vez ativado o dispositivo, ela disse, “passei a ir para a farmácia e nem sequer pensar em sorvete”.
Baldwin também constatou que seus gostos mudaram. Hoje seus alimentos favoritos são salgados, não doces. “Não é que eu não pense em comida nunca”, ela disse. “Mas não sou mais uma pessoa com desejos incontroláveis.”
Mas será que isso significa que a estimulação cerebral direta pode ser a resposta para pessoas com transtorno extremo de alimentação compulsiva periódica?
Breithaupt recomenda cautela. “São apenas duas pessoas”, disse.
Tradução de Clara Allain