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Controlar o sonho é o futuro da realidade virtual

Controlar o sonho é o futuro da realidade virtual

E se a realidade virtual (RV) fosse um processo mental em vez de computação gráfica?

Essa foi justamente a provocação feita por Joakim Vindenes, doutorando em RV pela Universidade de Bergen, na Noruega.

Em um texto publicado em 2021, o pesquisador sugeriu que sonhos lúcidos (isto é, a capacidade de conscientemente controlar o que ocorre nos sonhos) seriam melhores do que RV porque proporcionam um nível de imersão ainda mais intenso do que a tecnologia, além de não depender do uso de dispositivos e capacidade computacional avançados.

Em suas palavras:

Sonhos lúcidos não requerem um espaço físico, você não irá tropeçar na sua TV ou chegar ao limite do espaço de interação (guardian zone). Consequentemente, você não precisa de teletransporte para navegar, nem um supercomputador ou dispositivos caros de RV. Não há nenhum visor pressionando seu rosto e você não precisa de controles: dedos são precisamente rastreados e qualquer tipo de ferramenta pode ser sintetizado à vontade.”

E mais:

O campo de visão é extremamente amplo, não há nenhum efeito de tela-parede, o sweet spot é enorme, a resolução é super alta, a taxa de atualização é ótima, as funções hápticas são incríveis e há um mapeamento corporal completo já imbutido. A cereja do bolo ainda está numa interface cérebro-máquina através da qual você pode manipular o ambiente virtual com a sua mente, as mais avançadas inteligências artificiais que você já viu e uma infinita coleção de ambientes virtuais para a imersão.”

Essa é a premissa de filmes de ficção científica como:

  • “Paprika”
  • “A Origem” (Inception)
  • “A Cela” (The Cell)

Assim como Vindenes, essas obras também oscilam entre propor uma tecnologia capaz de adentrar a mente e/ou os sonhos das pessoas como métodos terapêuticos ou de investigação criminal.

Mas o quanto disso já é possível e estudado atualmente?

Para fins didáticos, vamos nos concentrar na possibilidade de acessar sonhos, uma vez que este é um estágio mental que se alcança durante o sono (ou mais precisamente durante a fase REM).

Com essa informação, já conseguimos nos situar melhor do que se tentarmos encontrar onde fica ou onde começa e termina a consciência —termo que sequer possui uma definição universal.

Contudo, quando estudou a mente humana, o psicanalista Sigmund Freud optou por dividi-la em três partes: o ego, superego e id, que transitam entre as “áreas” do consciente, pré-consciente e inconsciente.

Adicionando a esta proposta, Carl Jung sugeriu ainda que existiria um “inconsciente coletivo”, isto é, uma “rede” de compartilhamento de símbolos, arquétipos, narrativas que são parte integrante de nossa formação enquanto espécie e indivíduo.

Essa ideia encontra conexões no conceito de noosfera proposto em 1922 pelo filósofo e padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin. Etimologicamente, a palavra noosfera combina os termos gregos “noos” (razão) e “fera” (espaço, assim como em atmosfera ou biosfera), mas foi o cientista Vladimir Vernadsky quem popularizou o termo com uma conotação mais geológica ao entender que a noosfera seria uma espécie de terceira iteração das fases de desenvolvimento do planeta Terra.

Isto é, depois da formação da geosfera (matéria inanimada) e da biosfera (vida biológica), a noosfera se daria junto à emergência da cognição.

Não demorou muito para que essa teoria fosse cooptada por ecologistas como James Lovelock, que propôs a Teoria Gaia como o entendimento do planeta Terra enquanto um organismo vivo.

O desenvolvimento de tecnologias computacionais ou, mais especificamente a internet, deu a entender, portanto, que o sistema neural do planeta Terra estava sendo formado e, com isso, a noosfera emergia junto à rede mundial de computadores.

Esta é uma proposta que aparece em outra obra de ficção científica, a animação “Serial Experiments Lain”, de 1998, que foi, inclusive, tema da minha primeira pesquisa acadêmica.

Os anos 1990 e começo dos anos 2000 foram bastante ricos no sentido de fazer essas conexões entre as recentes descobertas tecnológicas e uma tentativa de entendimento filosófico do caminho que estaríamos traçando para a humanidade.

Foi nessa época que:

  • Ray Kurzweil publicou “A Era das Máquinas Espirituais” e “A Singularidade Está Próxima”
  • Douglas Rushkoff publicava “Cyberia”
  • Margaret Wertheim escrevia “The Pearly Gates of Cyberspace”

Os filmes que mencionei anteriormente —”Paprika” (2006) e “A Cela” (2000)— também foram lançados nesse período e são, por excelência, junto de “Matrix” (1999), um manifesto a esse novo entendimento da ambiguidade entre o virtual e o real.

Mais especificamente, “Paprika” possui um diálogo que se tornou icônico justamente porque a personagem principal sugere que:

Cena do filme "Paprika" - Reprodução - Reprodução

Cena do filme “Paprika”

Imagem: Reprodução

  • A internet e os sonhos seriam similares por serem espaços nos quais as pessoas podem expressar sua “mente consciente reprimida” (isto é, o inconsciente).

Naquele momento, a internet ou o virtual era visto de maneira geográfica, inclusive a partir do termo ciberespaço. A gente “entrava na internet”, assim como Neo entrava ou saía da Matrix.

Hoje, a internet ou o virtual não se dá mais num sentido localizado, acessado por meio da conexão, uma vez que esta já está estabelecida como padrão.

Se ontem nós ficávamos online, hoje estamos online e talvez amanhã seremos online.

A noção de se conectar à internet como forma de alcançar um estado mental foi justamente uma discussão levantada pelo psicólogo americano Timothy Leary, nos anos 1980, após dedicar-se à pesquisa sobre drogas psicodélicas.

Com o desenvolvimento da internet e de tecnologias imersivas como a realidade virtual, Leary passou a se interessar pelo ciberespaço e entendê-lo como uma nova forma de destravar estados de consciência.

Esses seus questionamentos aparecem também em “Serial Experiments Lain”, conforme a protagonista “navega” por níveis ainda mais profundos do ciberespaço.

Porém, se hoje não ficamos mais online, mas estamos online, será que esse deslocamento não estaria se dando a nível psíquico?

Até então, esse deslocamento parecia se dar no desenvolvimento de um novo lócus, uma nova dimensão que, hoje, nos referimos mais popularmente como metaverso.

No início da pandemia, a impossibilidade de se deslocar pelo mundo físico fez com que criássemos novas esperanças de poder fazê-lo online. Contudo, assim como o blockchain, também o metaverso está passando por um “inverno” da tecnologia, com Zuckerberg perdendo US$13,7 bilhões em 2022 após transformar o Facebook em Meta e apostar na realidade virtual.

Atualmente, são as inteligências artificiais generativas como o Dall-e e o GPT-3 (agora GPT-4) que estão surpreendendo por sua capacidade inovadora, especialmente no campo da computação gráfica.

Se outrora a IA do Google “sonhava” com cães elétricos (e não por menos havia sido chamada de Deep Dream), hoje a Dall-e sonha com mãos cheias de dedos e bocas cheias de dentes e a mecânica iterativa do diffusion model (técnica de aprendizagem de máquina) se torna uma linguagem cooptada por artistas em

Foi com relógios derretidos, chuva de homens engravatados e autorretratos em corpos de animais que os surrealistas do século passado nos ofereceram um acesso ao inconsciente e ao mundo dos sonhos.

Similarmente, foi com fractais e formas coloridas que a arte psicodélica também buscou transformar estados alterados de consciência em imagem.

Com seus resultados ainda imprecisos, as atuais IAs generativas também estão nos oferecendo figuras desconcertantes que nos fazem questionar se aquilo é real ou gerado.

E se esses programas, na verdade, funcionassem como um atalho ou catalisador dos nossos sonhos?

Há pouco mais de uma década, o neurocientista Jack Gallant da Universidade de Berkeley publicou um experimento no qual eles usaram ressonância magnética para imprimir as imagens que se passavam pelo cérebro das pessoas assistindo a alguns vídeos. A técnica, explorada no campo da neuroimaging, busca encontrar nos padrões de atividade neural uma maneira de traduzir em imagem o que uma pessoa poderia estar “visualizando” em sua mente.

No ano passado, uma dupla de cientistas deu um passo ainda mais adiante usando IAs generativas para reconstruir essas imagens cerebrais captadas por ressonância magnética.

Em 2019, um outro artigo também mapeou o estado da arte da neuroimaging com foco no sono e em sonhos.

Ou seja, pode ser que estejamos, de fato, nos aproximando daquilo proposto por Joakim Vindenes, quando este diz que sonhos lúcidos possam ser um melhor caminho do que a realidade virtual.

Para mim, essas inovações e caminhos que esses pesquisadores estão percorrendo me fazem lembrar essa citação do filósofo Dietmar Kamper:

Deus sonha o homem, o homem sonha a máquina e a máquina sonha Deus.”

Aqui, Deus aparece não como uma entidade religiosa específica, mas sim como um conhecimento ou conquista que parece estar muito além da nossa capacidade humana —e que talvez esteja mesmo, daí a esperança de que as máquinas possam ser nossas catalisadoras.

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