Laboratório remoto comandado por um time de especialistas de várias instituições permite conhecer melhor o efeito das mudanças climáticas na costa brasileira, além de servir de suporte para várias outras pesquisas.
É num deserto gelado onde as temperaturas chegam a 55 graus negativos que está instalado o Criosfera 1, um laboratório remoto comandado por cientistas brasileiros.
A estação, que acaba de completar dez anos em funcionamento ininterrupto na Antártica, conta com uma série de equipamentos especiais para medir e monitorar algumas informações do ambiente
Esses dados servem de base para pesquisas, que permitem entender o impacto do derretimento do gelo e a elevação do nível do mar na costa brasileira, os micro-organismos capazes de viver em condições extremamente hostis e até o papel dos ciclones no espalhamento de fungos, algas e outros materiais de um continente para o outro.
A BBC News Brasil entrevistou o geofísico Heitor Evangelista, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador científico do Criosfera 1.
Ele trabalha há 35 anos no Programa Antártico Brasileiro, que tem como base a Estação Comandante Ferraz, na costa do continente.
“A estação fica numa ilha ao norte da península Antártica, que conta com aeroporto e uma boa navegabilidade no verão”, contextualiza.
Já o Criosfera 1 está localizado mais no interior do continente, a quase 2,5 mil quilômetros da Estação Comandante Ferraz e a apenas 600 km do centro do Polo Sul.
Evangelista descreve a região como “um deserto de gelo”.
“Até para nós, que trabalhamos há décadas na costa da Antártica, conhecer as condições do centro do continente foi uma novidade. Ali é um deserto totalmente branco, sem visibilidade alguma. Durante o verão, o sol fica 24 horas rondando o horizonte. Já no inverno, são seis meses de noite com a temperatura a até – 55° C”, caracteriza.
O laboratório foi instalado naquele local em 2012, mas só entrou em operação plena no ano seguinte.
Ele tem 6,3 metros de comprimento, 2,6 m de largura e 2,5 m de altura e um peso total de 3,5 toneladas. Nos meses de verão, a energia é captada a partir de placas solares. No inverno, turbinas eólicas garantem o funcionamento de todos os aparelhos.
A iniciativa é coordenada pela Uerj, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com apoio do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
“Há exatos dez anos, transmitimos de forma ininterrupta os dados que são captados por lá”, diz o geofísico.
Mas quais foram as principais descobertas durante essa década de trabalho?
Derretimento do gelo
Evangelista destaca que a escolha do local para instalar o Criosfera 1 não foi aleatória.
“O setor oeste da Antártica é uma das regiões mais sensíveis do planeta para as mudanças climáticas. Falamos de um local que apresentou a maior taxa de aumento da temperatura nos últimos 50 anos”, resume.
Segundo o especialista, o manto de gelo que recobre esse território está sob “alto estresse climático”.
“Os dados nos mostram um aumento do fluxo de gelo dessas regiões em direção ao oceano. É possível identificar fraturas no gelo e o surgimento de icebergs”, detalha.
Todo esse material desemboca no mar, o que contribui para a elevação do nível das águas marítimas — o que interessa diretamente ao Brasil.
“Nosso país tem uma linha de costa com mais de 7 mil km ininterruptos e seremos um dos dez territórios mais afetados pela elevação do nível do mar, pois temos várias cidades litorâneas com mais de 1 milhão de habitantes”, afirma.
“Além disso, possuímos diversos ecossistemas de alta relevância que ficam na costa, como é o caso dos manguezais. Portanto, a elevação do nível do mar não afeta apenas o bem-estar social e econômico, mas também impacta diretamente a biodiversidade das nossas zonas costeiras”, complementa.
Evangelista argumenta que esses motivos são mais que suficientes para que o Brasil seja “protagonista no monitoramento do que acontece com o gelo no setor oeste da Antártica”.
“A partir desses dados, podemos aprimorar nossas projeções sobre o futuro e garantir ações para mitigar os danos”, diz.
Micróbios resistentes e ciclones disseminadores
O geofísico destaca outras pesquisas realizadas a partir do Criosfera 1 que investigam os tipos de seres microscópicos que vivem na região.
“Alguns colegas fazem pesquisas para determinar os micro-organismos que estão presentes no gelo antártico”, cita.
“São seres muito resistentes, que sobrevivem em condições extremas. Naturalmente, eles têm um potencial de gerar biotecnologias que é muito interessante”, avalia.
Outro trabalho do time que mantém o módulo brasileiro envolve o papel de ciclones e rajadas de ventos na disseminação de fungos, vírus, bactérias e plantas entre um continente e outro.
“Desde os anos 1980, temos observado um aumento nos ventos ao redor da Antártica. Também vemos uma elevação nos ciclones formados na bacia do Rio da Prata, na América do Sul”, explica.
“E toda essa dinâmica atmosférica diferente tem transportado material biológico para o interior da Antártica. Começamos a observar por lá a presença de esporos de fungos, fragmentos de algas marinhas e outros compostos”, continua.
Evangelista conta que, durante a última expedição para o Criosfera 1, o grupo de pesquisadores avistou pela primeira vez uma ave na região.
“Ela sobrevoou o nosso laboratório e aproveitamos para filmar e fotografar. Levamos as imagens para especialistas, que nos disseram que se tratava de um petrel-antártico”, conta.
“Geralmente, essa espécie se desloca apenas 250 km a partir da costa do continente. E nós fizemos o avistamento mais ao sul já registrado dela”, complementa.
Entender se as aves precisam viajar mais e qual a relação disso com as mudanças climáticas pode virar uma nova missão dos acadêmicos que exploram a região.
Outros achados recentes do Criosfera 1 incluem a detecção da maior onda de calor no setor oeste da Antártica e o registro pioneiro de um choque de pressão relacionado ao vulcão submarino Hunga, localizado em Tonga, no Oceano Pacífico.
O que vem pela frente
Para Evangelista, o módulo brasileiro tem muito a oferecer nas próximas décadas.
“Em primeiro lugar, precisamos aprimorar nossos equipamentos e tornar os sistemas ainda mais eficientes”, pontua.
“Também queremos instalar sensores para monitorar os gases do efeito estufa e os raios ultravioleta”, acrescenta.
Essas informações podem ajudar os cientistas a entender o ritmo de aquecimento do planeta e como está a recuperação da camada de ozônio, que nos protege contra parte da radiação solar.
Por fim, o geofísico admite um sonho: instalar no local o primeiro telescópio brasileiro ali.
“A Antártica é um local privilegiado para o estudo da astronomia e da astrofísica, que são áreas em que o país pouco investiu”, acredita.
No final de 2022, o convênio de cientistas brasileiros deu mais um passo nos estudos sobre a Antártica: a inauguração do Criosfera 2.
O segundo módulo brasileiro foi instalado a 500 km do Criosfera 1, ainda mais próximo do centro do pólo sul.
Os responsáveis pelo projeto entendem que as informações coletadas pelo módulo serão “essenciais para a melhoria dos modelos de previsão tanto meteorológica como de mudanças do clima”.
“Os dados também serão utilizados para detectar sinais de mudanças na química atmosférica que estejam relacionados à poluição na América do Sul, por causa de poluentes industriais vindos das queimadas”, antevê um texto publicado no site do MCTI.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c88dy4gj312o