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Por que ‘Pixote’ (também) representa o melhor do cinema brasileiro – 27/12/2022

Por que ‘Pixote’ (também) representa o melhor do cinema brasileiro – 27/12/2022

Listas são um barato. As de melhores filmes, então, são verdadeiros ninhos de tretas. Afinal, a função social de uma lista, além claro de jogar um holofote em trabalhos indispensáveis para todo cinéfilo, é causar discórdia.

Não foi nesse espírito, acredito, que a revista “Variety”, uma das principais publicações do mercado do cinema, cravou sua primeira seleção com os 100 melhores filmes de todos os tempos. A intenção, por óbvio, é celebrar a arte cinematográfica, Como deveria ser.

Lá estão “Psicose” (no topo da lista) e “O Poderoso Chefão”. “Cidadão Kane” e “Os Sete Samurais”. “A Regra do Jogo” e “Quando Duas Mulheres Pecas”. “Os Incompreendidos” e “O Império Contra Ataca”. Uma centena que título que você precisa – precisa! – conhecer. Entre eles, “Pixote – A Lei do Mais Fraco”. Opa!

Aqui vale a gente voltar um tantinho no tempo. Em 2006 eu cobri o lançamento de “Os Infiltrados”, filme que por fim deu o Oscar de melhor diretor a Martin Scorsese. Quando nossa entrevista começou, ele começou a desfilar sua admiração pelo cinema brasileiro. Citou o Cinema Novo. Mencionou filmes que eu, vergonhosamente, desconhecia. E terminou o parágrafo com um “Eu considero ‘Pixote’ uma obra-prima”.

O relógio retrocede mais algumas décadas até 1980, quando o diretor Hector Babenco lançou “Pixote”. O Brasil ainda vivia sob o jugo da nefasta ditadura militar, que felizmente caminhava para seu fim. Ainda assim, o braço forte da censura esmigalhava qualquer registro que a arte pudesse fazer da época.

Babenco, como o grande artista que era, costurou uma narrativa tão brilhante em seu realismo que não deixou espaço para a tesoura mutilar seu trabalho. “Pixote”, por sua vez, não era um filme fácil. Como retrato da delinquência juvenil nas ruas de uma grande metrópole do Brasil, e do total descaso das autoridades com essas crianças, o filme borrava a linha entre fato e ficção com maestria.

Ao final dos anos 1970, e ao longo dos primeiros anos da década seguinte, o cinema brasileiro foi dominado ou pelo grupo humorístico Os Trapalhões, ou pelas pornochanchadas que vendiam sexo, às vezes de forma quase explícita. As bilheterias brasileiras em 1980 foram dominadas numa ponta por “O Rei e os Trapalhões” e “Os Três Mosqueteiros Trapalhões”, na outra por “Giselle” e “A Noite das Taras”.

Ensanduichado entre o riso infantil e o sexo sancionado pelo Estado, estava “Pixote”. Foi um fenômeno que levou quase três milhões de brasileiros ao cinema, um filme obrigatório que dominou a discussão não só da arte, mas também do estado das coisas. O brasileiro estava cansado da ditadura militar, corrupta, violenta e ineficiente, e o filme de Babenco, ao lado de “Bye Bye Brasil”, dava voz a um grito abafado por décadas de repressão.

Claro que o tema abordado por “Pixote”, rodado por Babenco em um estilo quase documental, serviu como um espelho para um país assolado por uma máquina administrativa apodrecida. Mas o olhar para a crise urbana e social de nada adiantaria se o filme não fosse, como Scorsese colocaria para mim anos depois, uma obra-prima.

Baseado no livro “Infância dos Mortos”, de José Louzeiro, “Pixote” acompanha um garoto de 11 anos que, após fugir de um reformatório para jovens infratores, é recrutado para roubar e transportar drogas. Se torna cafetão, envolvendo-se com a prostituta interpretada pela gigante Marília Pêra. Se torna assassino. O submundo do crime bate mais pesado ao ser filtrado pelo prisma de uma criança obrigada a sacrificar sua infância para sobreviver.

Cruel e violento, “Pixote” não esconde sua concepção no contexto da ditadura brasileira. Ao ser exibido além de nossas fronteiras, o filme também serviu como alerta ao mundo para as condições sociais deploráveis que o regime militar deixara no Brasil. A obra de Babenco foi aclamada em festivais e publicações internacionais e reconhecido pela crítica como um filme urgente e essencial.

A realidade que “Pixote” costura também atravessou as barreiras da ficção de forma trágica. Fernando Ramos da Silva, escalado por Babenco para ser seu protagonista, não era ator profissional, e fora escolhido por trazer em sua vida chagas que poderiam ser enxergadas no personagem. Fernando fez um trabalho dramático excepcional, e buscou na arte um meio para sair do ambiente de miséria em que vivia.

Com o sucesso no cinema, ele tentou engrenar uma carreira em filmes e também em novelas da Globo. Semialfabetizado, o jovem terminou dispensado por não conseguir entender ou decorar seu texto. De volta à Diadema, em São Paulo, Fernando terminou se envolvendo com a criminalidade.

A perseguição policial também era constante: em uma entrevista ele disse que era constantemente acossado por PMs que não distinguiam ator de personagem. Por fim, foi morto aos 19 anos por dois policiais militares que o executaram, desarmado, com oito tiros à queima-roupa. Sua vida foi retratada pelo diretor José Joffily em 1996 no filme “Quem Matou Pixote?”.

A lembrança pela lista da “Variety” despertou interesse em uma nova geração que nunca assistiu a “Pixote” (o filme está disponível na plataforma de streaming Globoplay). É também uma oportunidade para resgatar um recorte precioso do cinema brasileiro, que sobrevivia em um dos períodos mais precários de nosso audiovisual, alguns anos antes de o mercado ser sepultado pela política econômica do governo Collor.

Se listas são escolhas subjetivas, “Pixote – A Lei do Mais Fraco” talvez nem seja o filme brasileiro mais importante da história. Outras obras habitam o mesmo espaço, de “O Pagador de Promessas” a “O Bandido da Luz vermelha”. De “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” a “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. De “Cabra Marcado Para Morrer” a “Cidade de Deus”.

Todos poderiam estar na lista da “Variety” – ou em qualquer outra. Cada um representa o melhor do cinema nacional. A arte ainda é nossa melhor “arma” contra as trevas da ignorância e da repressão, que ainda ameaçam empurrar nossa cultura em um abismo. Uma escuridão que, espera-se, desapareça neste novo ano que se aproxima.

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