Um dos pontos em análise por diferentes grupos da transição de governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é a revogação de uma série de normas editadas por Jair Bolsonaro (PL) que não passaram pelo Congresso.
A medida, contudo, é apontada como apenas um dos passos para lidar com os impactos de sua atuação nos últimos quatro anos. Um dos desafios será fazer com que parte dos órgãos estatais volte a atuar de modo alinhado com os papéis a eles atribuídos pela Constituição e pelas leis.
Outra complicação será resolver complexas situações jurídicas que irão se impor a partir da revogação de parte das normas, além de danos cujas consequências são em certa medida irreversíveis.
A análise é compartilhada por Oscar Vilhena, professor da FGV Direito-SP e colunista da Folha; por Rubens Glezer, coordenador do Supremo em Pauta da FGV; e pela mestre em direito e pesquisadora Ana Laura Barbosa.
O trio de pesquisadores cunhou a expressão “infralegalismo autoritário” para denominar o modus operandi de Bolsonaro, tema de uma série de reportagens sobre o tema foi publicada na Folha no início de 2022.
Eleito com um discurso contrário a políticas de proteção ambiental, contra demarcação de terras indígenas e em defesa de um maior acesso a armas, além das críticas a organizações da sociedade civil e aos direitos humanos, o presidente chega ao fim de seu mandato sem ter realizado mudanças significativas nas legislações sobre o tema.
Por outro lado, parte dessa agenda foi impactada por uma série de medidas administrativas que dependiam em geral apenas de uma “canetada”, como edição de decretos, instruções normativas ou mesmo a nomeação de pessoas contrárias aos objetivos dos órgãos para cargos de comando e cortes orçamentários.
Também a prática de Bolsonaro de dar ordens informais, como em suas lives semanais, ou de punir servidores que contrariem tais vontades são apontados como parte do método.
No meio ambiente, logo no primeiro ano de mandato, Bolsonaro desacreditou órgãos responsáveis pela medição dos níveis de desmatamento, chegando a dizer que o então diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) poderia estar a “serviço de alguma ONG.”
Parte do cenário de perseguição a servidores promovido pelo governo foi registrada no livro “Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e Desconstrução do Estado” (Eduepb), que se define, no prefácio, como um livro-denúncia e foi organizado pela Associação dos Funcionários do Ipea.
“Um servidor que passou por uma situação de quatro anos de ameaça volta a exercer o seu trabalho com o ímpeto de seis anos atrás?”, questiona Rubens Glezer, que considera que o país tem pela frente uma longa curva de reinstitucionalização. “Da burocracia se sentir de novo com força, que as pessoas que vão cumprir a lei de fato, não vão ser punidas.”
Para ele uma das consequências do modo de ação do governo foi um enfraquecimento das instituições. “Esse é um desafio gigante pela frente, que ainda que você faça um ‘revogaço’ dos decretos e das normas, você não lida com essa terrível herança do governo Bolsonaro”, diz.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) é um exemplo de órgão que esteve sob ataque ao longo da gestão de Bolsonaro. Um dossiê lançado à época do desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips acusava o órgão de implementar uma política anti-indigenista.
Segundo o documento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e da INA (Indigenistas Associados – Associação de Servidores da Funai), entre as marcas da gestão estavam a perseguição a servidores e lideranças indígenas, além do esvaziamento de quadros da entidade e cortes orçamentários.
O caso de Pereira, que era servidor licenciado da Funai, foi apontado como exemplo de como o órgão passou a atuar sob Bolsonaro. Uma das primeiras medidas do novo presidente da fundação, Marcelo Xavier, foi exonerar o indigenista da função de coordenador-geral da área de Índios Isolados, logo após uma grande operação contra o garimpo.
“O que o Bolsonaro fez em função de não ter capital político para alterar grande parte dessa legislação foi atuar na desconstrução das agências responsáveis por aplicar de maneira congruente a legislação”, avalia Oscar Vilhena. Um dos desafios principais, aponta ele, é justamente encontrar meios de recompor a máquina burocrática.
Além disso, ele destaca que parte dos danos não poderá ser recuperadá. “O que foi devastado, foi devastado, as multas que não foram aplicadas, não foram aplicadas”, diz. “O infralegalismo deixa um rastro.”
Vilhena destaca ainda que lidar com a revogação de decretos e normas editados sob Bolsonaro imporá desafios ao futuro governo, como já vem sendo debatido pelo grupo de transição na questão do armamento.
“Você cria relações jurídicas. Ainda que você não crie direito por decreto”, afirma ele, que antevê, por exemplo, possíveis questionamentos de indenização no caso de eventual recolhimento de armas que tenham sido adquiridas por meio de normas que venham a ser revogadas.
Parte das iniciativas infralegais de Bolsonaro foi barrada ou limitada pelo Judiciário, mas na lista de ferramentas do “infralegalismo autoritário”, os pesquisadores incluem ainda itens cujo motor principal é a inação ou mesmo omissão. Exemplos são a não-execução de orçamento previsto para determinada política, além do estímulo à paralisação de órgãos, ao deixar cargos vagos por longos períodos.
A pesquisadora Ana Laura Barbosa reflete que um dos complicadores do modo como Bolsonaro implementou sua agenda é que há muito desconhecimento sobre os reais impactos da sua gestão. “A gente não tem noção completa do tamanho dos danos em termos de desinstitucionalização, justamente porque o método do infralegalismo é opaco e ele é replicado dentro de cada um dos órgãos da burocracia.”
A pesquisa sobre o “infralegalismo autoritário” integra o Projeto sobre Estado de Direito e Legalismo Autocrático (em inglês, PAL), que envolve acadêmicos de diferentes países e universidades e que tem o Brasil como um de seus objetos de estudo.
O que é “infralegalismo autoritário”? Pesquisadores cunharam a expressão para explicar qual seria o modus operandi bolsonarista para desmontar políticas públicas. O presidente estaria atuando no sentido de desgastar a democracia, não por meio de projetos de lei e de alterações na Constituição, mas via medidas infralegais.
Quem criou o termo? O professor da FGV Direito-SP e colunista da Folha, Oscar Vilhena, junto do coordenador do Supremo em Pauta, Rubens Glezer, e da mestre em direito e pesquisadora Ana Laura Barbosa intitularam de “infralegalismo autoritário”, o que veem como o método de gestão de Bolsonaro.
Como funciona? A hipótese é que Bolsonaro teria buscado implementar medidas autoritárias ou contrárias a determinações constitucionais sem apoio do Legislativo, mas utilizando, entre outras medidas, a edição de decretos e de outras medidas administrativas para desvirtuar leis e descaracterizar políticas públicas, sem que elas sejam revogadas.
Omissões, cortes orçamentários, o estímulo à paralisação de órgãos, por exemplo, ao deixar cargos vagos por longos períodos, também fazem parte das estratégias. Além de uma dimensão para-institucional, que inclui a prática do presidente de dar ordens informais, como era praxe em suas lives semanais, ou de punir servidores que contrariem tais vontades.
Em quais áreas Bolsonaro agiu assim? Bolsonaro lançou mão de estratégias que burlam o Legislativo e a institucionalidade em diferentes áreas, alguns exemplos são a flexibilização no acesso a armamento, fragilização da autonomia de instituições de controle e vigilância, ataques ao pluralismo e diversidade no setor cultural e desmantelamento de políticas ambientais.
Quais as consequências? Ao mesclar pelo menos duas estratégias, Bolsonaro estaria abrindo caminho para ataques a pilares da Constituição, como o pluralismo e os direitos fundamentais.