As camisetas das seleções que disputam a Copa do Mundo do Qatar 2022 exibem, lado a lado, os escudos dos países que conquistaram vagas na disputa e os logotipos de grandes marcas esportivas. Nike, Adidas e Puma dominam os uniformes exibidos no país árabe: entre os 32 times que estão no Mundial, apenas seis não têm contrato com alguma dessas empresas.
Mas enquanto o maior evento de futebol do mundo movimenta as vendas e faz crescer o faturamento das empresas de material esportivo, no Brasil, trabalhadores das fábricas licenciadas para as três marcas precisam silenciar as próprias dores e lesões causadas pelo esforço repetitivo ao longo de jornadas de até 10 horas diárias. Há outros problemas, que vão desde salários achatados até a restrição de idas ao banheiro – mesmo para mulheres gestantes – encaradas como distração que podem comprometer as metas industriais.
A Repórter Brasil ouviu 12 sindicatos de trabalhadores de três regiões brasileiras que produzem para as marcas da Copa do Mundo no Sul, Sudeste e Nordeste do país e entrevistou vários empregados do setor. As conversas revelam uma rotina de desorganização, falta de unidade e impotência diante de uma indústria que impõe condições hostis de trabalho em busca de índices cada vez mais altos de produtividade.
As marcas internacionais e as empresas donas das fábricas brasileiras ressaltam que são feitas auditorias regularmente nas linhas de produção e que seguem rigorosamente a legislação trabalhista.
“A Nike está profundamente comprometida com a fabricação ética e responsável e em garantir que todas as pessoas que fabricam nossos produtos sejam respeitadas e valorizadas”, informa a fabricante das camisetas da seleção brasileira.
Já a Adidas diz que seleciona seus fornecedores com rigor para se certificar que “atendem aos padrões globais de respeito à liberdade individual e bem-estar no ambiente de trabalho, seguindo as leis trabalhistas e convenções sindicais das categorias”. A íntegra das respostas pode ser lida aqui. A Puma não enviou seu posicionamento até a publicação deste texto, mas o espaço permanece aberto.
Mas para os trabalhadores, isso tem sido insuficiente.
“Desde a reforma trabalhista de 2017, o que era ruim ficou ainda pior. É muito, muito difícil conseguir alguma compensação da empresa por lesões no trabalho ou melhorias na rotina”, revela Cida Trajano, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Ramo Vestuário (CNTRV).
Dor e banheiro controlado
Seja no bordado, na esteira de montagem ou no encaixe da borracha nos calçados, as jornadas de trabalho de quem fabrica itens Nike, Puma e Adidas incluem muitas horas na mesma posição, inclusive em pé. O esforço repetitivo ao longo das jornadas de oito, nove ou até dez horas cobra um preço, especialmente nas costas, de acordo com as reclamações mais comuns coletadas pela reportagem.
“O que tem de bursite, LER e DORT não tem fim”, confirma Cida Trajano, referindo-se às siglas de duas complicações de saúde frequentes em unidades industriais: as Lesões por Esforço Repetitivo e os Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho.
As fábricas no Brasil possuem equipes de saúde ocupacional que atuam na prevenção e tratamento das doenças, só que, pressionados pelo medo de serem mal vistos pela chefia e perderem o emprego, muitos trabalhadores deixam de consultar o médico para evitar apresentar um atestado e faltar ao trabalho. A alta rotatividade de funcionários, jovens na maior parte, também acaba escondendo reclamações sobre conforto e salubridade. “Começou a ter dor ou lesão já é mandado embora – com alguma outra desculpa, é claro”, lamenta a dirigente.
Apesar dos relatos, os representantes sindicais não sabem precisar o número de doenças ou acidentes de trabalho nas fábricas, tampouco tem registro dos casos de afastamentos ou mortes por Covid-19 durante a pandemia. A resposta quase unânime foi “a empresa não fornece os dados para o sindicato”.
Para manter os níveis altos de produtividade, os intervalos para descanso e para uso do banheiro são controlados com rigor pelos encarregados dos pátios das fábricas. Trancados e com a chave sob cuidado desses supervisores, os sanitários podem ser acessados um número pré-estabelecido de vezes, durante um tempo monitorado.
“Queremos poder ir ao banheiro quando sentirmos vontade”, desabafa Delírio Ferreira Borges, operário da Ramarim na cidade gaúcha de Nova Hartz, licenciada para fabricar tênis e chuteiras esportivas para a Adidas. Procurada pela reportagem, a Ramarim não enviou comentários até a publicação deste texto. O espaço segue aberto para sua manifestação.
Nesse cenário de restrição, quem sofre mais constrangimento são as mulheres, por razões que podem variar entre uma gestação ou o próprio período menstrual – fatores que exigem idas ao banheiro mais frequentes.
Atuando em Jequié (BA), onde há linhas de montagem das três grandes marcas esportivas, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias e Fabricação de Calçados da Bahia (Sintracal), Carlos André dos Santos, afirma ter visto episódios degradantes como colegas “menstruarem e terem de continuar trabalhando”, por exemplo.
Desigualdade e assédio
Para comprar o modelo “canarinho” usado como uniforme principal pela seleção brasileira no site da Nike é preciso desembolsar quase R$ 700 – preço que praticamente inviabiliza que trabalhadores das fábricas da marca possam adquirir o item. De acordo com o levantamento da Repórter Brasil, a média salarial na linha de produção das fábricas brasileiras das três marcas esportivas principais da Copa do Mundo é de R$ 1,4 mil. Mas há diferenças significativas entre os polos produtores do Sul, Sudeste e Nordeste.
O maior salário do setor é pago pela Ramarim, em Sapiranga, Rio Grande do Sul, licenciada para fabricar tênis e chuteiras esportivas para a Adidas: R$ 1.742.
O pior salário está no Nordeste, onde há fábricas que confeccionam para as três marcas, e os entrevistados afirmam receber remuneração de R$ 1.240.
Empresas que possuem unidades em mais de um estado pagam salários diferentes em cada região, caso da Dass, que fabrica para Adidas, Nike e Puma. A empresa justifica dizendo que enquanto no Sul e Sudeste mantém núcleos de desenvolvimento e criação de calçados, unidades produtivas de confecção e têxtil e departamentos comerciais e de marketing, no Nordeste estão os trabalhadores que fabricam calçados. “A comparação direta de salários é equivocada, uma vez que os perfis profissionais são completamente distintos”, alega. A íntegra pode ser lida aqui.
O salário oferecido em Brejo Santo, no Ceará, a empregados da fábrica da Dilly Nordeste Indústria de Calçados que produz tênis para a marca Puma é R$ 1.240.
O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados do Estado do Ceará já está em campanha salarial para aumento do piso para R$ 1.300. “Também estamos reivindicando auxílio transporte, porque a empresa não oferece”, diz Regina Lessa, tesoureira da entidade.
O problema é que o sindicato fica em Fortaleza, 500 quilômetros de distância da unidade fabril, o que dificulta o contato com seus representados. Como não há um delegado sindical na fábrica, o diálogo com os trabalhadores e a fiscalização das condições de trabalho precisa ser feito por grupo de WhatsApp – mas nem sempre o uso do telefone é permitido ao longo da jornada.
A Dilly diz que “a remuneração é estipulada em acordo com o sindicato dos trabalhadores de cada uma das regiões onde estão localizadas as fábricas”. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.
A sindicalista Regina Lessa revela também que a unidade da Aniger em Quixeramobim, também no Ceará, que fabrica calçados para a Nike desde o ano 2001 através da Cooperativa Cocalqui, não reconhece Fortaleza como base sindical dos trabalhadores de sua planta – e com isso, os empregados ficam sem representação. A Aniger e a Cocalqui não responderam às tentativas de contato feitas pela reportagem, mas o espaço permanece aberto.
Mesmo onde há pagamento de melhores salários, o assédio das chefias sobre os empregados é uma realidade desconfortável. “É a principal queixa dos trabalhadores do Grupo Dass”, diz João Emerson Campos, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Calçado e Vestuário de Venâncio Aires e Mato Leitão. O grupo fornece serviços e itens para Adidas, Nike e Puma em plantas no Rio Grande do Sul e Bahia.
Procurada pela reportagem, a Dass disse que proíbe ameaças e qualquer tipo de agressão entre funcionários. “O relacionamento e tratamento entre os colaboradores deve ser pautado no diálogo e no respeito mútuo”, defende. A íntegra pode ser lida aqui.
Situação semelhante é relatada pelo Secretário Geral do Sindicato dos Sapateiros de Sapiranga e Região, Leandro Rodrigues dos Santos, onde está a sede gaúcha da Ramarim (Adidas). Embora pague o melhor salário da região, é a que mais registra pedidos de demissão – em muitos casos, por assédio. “Mas quando a gente quer levar mais para frente, fazer um boletim de ocorrência, o trabalhador desiste, tem medo”, lamenta. A Ramarim não retornou os contatos da reportagem, mas o espaço permanece aberto.
Colaboração danosa
Há casos, entretanto, que quem não leva adiante as queixas dos trabalhadores é o próprio sindicato. Os cerca de quatro mil funcionários da fábrica da Lupo, em Araraquara (São Paulo), fazem da unidade a segunda maior fornecedora brasileira das marcas Adidas, Nike e Puma. Mas quando tiveram problemas laborais, três trabalhadoras que preferem não se identificar com medo de represálias precisaram buscar apoio no sindicato dos metalúrgicos, onde seus irmãos e maridos eram filiados. A escolha se deu diante da constatação de que o Sindicato dos Trabalhadores do Vestuário mantinha “estreita relação com a chefia da empresa”, disseram.
Procurado, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Têxteis de Araraquara e Região não enviou esclarecimentos para a reportagem.
Em muitos casos, a fábrica é a maior empregadora das pequenas cidades no interior do Brasil, fonte de renda de famílias inteiras, por isso, uma denúncia a um órgão de controle ou a um sindicato está fora de cogitação.
A reforma trabalhista contribuiu com este cenário na medida em que a empresa não precisa mais fazer a rescisão por meio do sindicato, levando as entidades para um patamar menor de relevância.
“Isso é muito pensado, não é algo aleatório. Mas a sociedade civil só se dá conta quando o trabalhador está abandonado e não tem mais a quem recorrer”, critica o auditor fiscal do Trabalho e chefe da equipe de Combate ao Trabalho Escravo no setor da Moda no Estado de São Paulo, Luís Alexandre de Faria.
Desmonte orquestrado
Na visão de Faria, o cenário atual é uma resposta a intensificação da fiscalização ocorrida entre 2010 e 2018, quando grandes operações marcaram o segmento e levaram sindicatos, sobretudo em São Paulo, a cobrarem do poder público a responsabilização das grandes marcas que terceirizam sua produção para marcas menores e quarteirizam para pequenas oficinas, muitas delas irregulares. “Se a produção é da tua marca então você é responsável por ela”, reforça.
Esse movimento, por dez anos, forçou as marcas a tomarem medidas para melhorar a cadeia produtiva, mas também fez com que muitas fábricas migrassem das capitais para cidades do interior, dificultando o monitoramento. A fiscalização do trabalho é federal, feita pelos auditores fiscais do trabalho e as capitais tem a sua gerência, mas à medida que o tamanho do município vai diminuindo ele passa a não ser mais atendido, ou poderá ser atendido pela gerência do município mais próximo que fica há 200 km, por exemplo.
Um quadro que se agravou com a falta de concursos públicos para reposição de aposentados dos órgãos de controle e fiscalização. “Dificulta não só o atendimento às denúncias, mas a própria análise da cadeia produtiva com ferramentas de inteligência que nos permitiriam flagrantes independentemente das denúncias”, destaca.
* Colaborou João Diaz