O Brasil que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai assumir em 2023 estará pior ou melhor do que aquele que recebeu 20 anos atrás, em 2003, quando iniciou seu primeiro mandato?
Inflação e juros estão numericamente melhores hoje, mas ainda muito acima do patamar ideal, dizem economistas ouvidos pelo UOL. Para eles, um dos grandes desafios de Lula será administrar o dinheiro público e encontrar meios para cumprir promessas, como manter o Auxílio Brasil em R$ 600 por mês.
Gastos públicos são problema: A saúde das contas públicas, muito afetada pela pandemia de covid-19, será o maior problema a ser resolvido pelo novo governo em 2023. Há dúvidas sobre como os gastos serão administrados para cumprir as promessas de campanha e manter as contas em dia.
Há 20 anos, Lula herdava um Brasil que havia acabado de adotar uma nova política fiscal: a meta de superávit primário. A regra determinava que a diferença entre receitas e despesas de um ano, excluído o pagamento dos juros da dívida, deveria ser positiva.
Hoje a regra fiscal adotada é a do teto de gastos, que prevê um limite para o crescimento das despesas públicas, mas já foi “furado” diversas vezes ao longo do governo de Jair Bolsonaro (PL). Cálculos feitos para a BBC News Brasil pelo economista Bráulio Borges, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), indicam que os gastos acima do teto somam R$ 794,9 bilhões de 2019 a 2022.
Segundo o economista César Bergo, professor da UnB (Universidade de Brasília), as políticas adotadas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso deram um “encaminhamento bastante positivo” para seu sucessor.
“De 1999 a 2002, no segundo mandato de FHC, o crescimento médio [da economia] foi de 2,3% ao ano. Com o Lula, essa média aumentou para 3,5% no primeiro mandato e 4,6% no segundo mandato.”
Verdadeira “herança maldita”: Carla Beni Menezes de Aguiar, economista e professora dos MBAs da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas), concorda que a situação do Orçamento agora é pior do que a que Lula herdou em 2003.
“Sob a ótica das contas públicas, a situação agora é muito pior. O Lula vai realmente saber o que é herança maldita. Quando ele foi eleito pela primeira vez, dizia que tinha recebido uma ‘herança maldita’ de Fernando Henrique Cardoso.”
Como pagar Auxílio Brasil? Principal tema da campanha eleitoral, o Auxílio Brasil será um grande desafio para as contas públicas. O novo governo precisará encontrar meios de manter o benefício em R$ 600 por mês sem estourar o teto de gastos.
Enviada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a proposta de Orçamento para 2023 prevê auxílio de apenas R$ 405. O valor de R$ 600, proposto pelo atual governo, foi aprovado pelo Congresso em julho e tem validade até dezembro. Ao longo da campanha, nem Bolsonaro nem Lula deram pistas de como fariam para manter o valor.
“Estamos carentes de informações em relação a políticas econômicas de Lula. O que ele vai fazer para melhorar a eficiência dos recursos públicos?”, questiona o professor da UnB.
Aliado de Lula, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) apresentou na segunda-feira (28) a PEC da Transição, que retira o Auxílio Brasil do teto de gastos por quatro anos. Um primeiro rascunho do projeto não delimitava prazo para a vigência dessa mudança, o que havia sido mal recebido pelo mercado financeiro. A avaliação é de que o texto propôs um período a mais para ser negociado algum corte.
Para que as regras sejam válidas a partir de janeiro, a PEC precisa ser aprovada no Senado e na Câmara dos Deputados antes de 16 de dezembro. Sem definição, investidores seguem receosos de que o novo governo deixe de lado a responsabilidade fiscal para cumprir as promessas feitas na eleição, segundo Carla Beni, da FGV.
Nós estamos meio como em um navio à deriva com relação às perspectivas. Ficamos quatro anos sem planejamento. As últimas grandes decisões saíram no governo [Michel] Temer, como a reforma trabalhista e a reforma da Previdência. Precisa ter um plano de voo, e não temos ainda. O mundo todo está carente de oportunidades de investimentos.
César Bergo, da UnB
PIB quase estagnado: Em 2002, último ano de FHC na Presidência, o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil cresceu 3,1% em relação a 2001, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O país manteve essa trajetória de crescimento ao longo dos dois mandatos de Lula, chegando a registrar alta de 7,5% em 2010. Apenas em 2009 o PIB registrou leve queda, de 0,2%.
Em 2021, esse aumento foi de 4,6%, impulsionado principalmente pela retomada das atividades depois do pior momento da pandemia de covid-19. Mas agora a projeção do último Boletim Focus, que traz expectativas de mercado para a economia brasileira, indica que o país deve crescer menos em 2022 (3,05%) e ficar praticamente estagnado em 2023 (0,75%).
Além disso, a leve recuperação do PIB não tem refletido em melhora significativa nas condições de vida da população, que também é afetada pela alta dos preços e pelos juros altos.
“Nos dois últimos anos de FHC, o país estava um pouco arrumado. Hoje temos uma inflação em declínio, o que é importante, mas uma taxa de juros real muito elevada. Lula pega um país um pouco pior do que pegou em 2003”, opina Bergo.
Inflação acima da meta: De fato, a inflação acumulada em 2022 deve ser menor do que a registrada em 2021. No ano passado, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) fechou em 10,06%, enquanto o acumulado nos 12 meses terminados em outubro está em 6,47%, segundo o IBGE.
A projeção do último Focus é de que a inflação suba 5,92% em 2022. Em 2002, a título de comparação, a alta dos preços foi de 12,53%.
O problema é que, apesar da desaceleração da inflação, ela ainda está acima da meta definida pelo governo, de 3,5%, com margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo (isto é, podendo variar entre 2% e 5%).
Há 20 anos, foi diferente: já no primeiro ano de mandato de Lula, a inflação desacelerou a 9,3%, chegando a 3,14% em 2006. Ao final do segundo mandato (2010), o IPCA acumulado foi de 5,91%.
Sob a ótica inflacionária, numericamente, o país está melhor hoje. Por outro lado, está pior [na economia], principalmente devido à pandemia. Estamos com uma desigualdade maior, uma população mais vulnerável, um emprego mais precarizado. Tivemos aí o retorno do Brasil ao mapa da fome.
Carla Beni Menezes de Aguiar, da FGV
Juros continuam altos: Lula ainda enfrentará o mesmo problema que herdou em 2003: os juros altos. Ao longo do governo Bolsonaro, a taxa Selic foi de 6,5% ao ano em janeiro de 2019 para 13,75% agora.
Isso é quase metade do que em dezembro de 2002, quando estavam em 25% ao ano. Mas, assim como há 20 anos, o Brasil segue tendo o maior juro real do mundo (calculado pela diferença entre a Selic e a inflação), à frente de países como México, Rússia e até Argentina, que vive uma forte crise econômica há anos.
“Isso dificulta os investimentos e o empreendedorismo”, explica a professora da FGV.