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Caetano canta gospel com pastor no mundo da farofa da Gkay – 05/12/2022 – Ilustrada

Caetano canta gospel com pastor no mundo da farofa da Gkay – 05/12/2022 – Ilustrada

Vou abordar um assunto delicado, e começo então com um pequeno bloco de abre-alas, pedindo passagem.

Há o mistério e há a religião. O mistério sempre me tocou e até hoje me espanta o mundo, a linha de qualquer horizonte ou o esforço de algum bicho.

Sou do tipo que anda sozinha na praia e de repente me vejo atônita sentada na pedra, em uma meditação obscura sobre essa insistente força de milhões de anos que não cessa de triturar o duro e criar formas de estar na dança absurda que é a do universo. Talvez uma forma de prece.

A religião é outra coisa. Qualquer religião é a tentativa, humana, demasiado humana, de dar voz e narrativa a esse mistério insondável. A história das religiões nos mostra que esse processo não é genérico nem aleatório e que ele segue as mentalidades das épocas.

A própria ideia de se criar um conceito abstrato de Deus —monoteísmo judaico— e depois sua universalização e corporificação —cristianismo— e, ainda, a mediação humana pela posição profética —islamismo— faz sentido numa linha lógica das subjetividades.

Seguindo Max Weber, qualquer que seja nossa religião, somos de fato todos protestantes. No mundo capitalista todos aprendemos que a vida terrena tem valor e que não é pecado ter sucesso. Essa é uma ideia que veio surgindo aos poucos e ganhou peso pós-Reforma. Nós paramos de lamentar a vida tal como ela se apresenta e resolvemos nos autorizar a desfrutar dela.

Da mesma forma, descobrimos que, diante da incerteza sobre a existência de um deus que fosse um pai idealizado e cuidador, o melhor negócio seria organizar sistemas de proteção aqui na Terra.

Essa é uma das maiores ideias modernas –eu penso, eu existo e eu cuido de mim. A cada um a responsabilidade de cuidar de si mesmo, e a todos nós a responsabilidade de cuidarmos uns dos outros.

O final da história sabemos. A rede de proteção foi ficando vasta e impessoal o bastante para se chamar Estado e hoje temos manuais em que discriminamos quais os direitos e deveres do Estado e os nossos.

Temos problemas profundos na execução desse projeto? Sem dúvida. Então, o que fazer? Usar as redes de proteção que já existiam antes do Estado moderno, como a família e os amigos. As igrejas evangélicas são formações capilarizadas que servem como núcleos condensadores dessas redes de proteção, material e espiritual. Com contatos, trabalhos, comida, cursos e amparo psicológico e moral.

Outra coisa que descobrimos é que usufruir da vida “profana” é bom. Que não precisamos ter tanto medo do nosso corpo ou da nossa sexualidade. É bom se sentir bem e ter prazer. E que podemos inclusive não precisar controlar tudo nem temer tanto perder a consciência. Não precisamos temer a pulsão como se ela tivesse um poder maligno sobre nossa vontade.

Você pode até pegar um avião fretado e passar uma semana com amigos famosos numa farofa de sexo, drogas e música. Pesquisamos formas contemporâneas de escoamento pulsional —mas hoje sabemos que a busca sedenta por prazer pode causar desprazer e ser um imperativo superegoico de gozo.

Mas o contrário também não é bom. Foram séculos de repressão patriarcal apoiada em ideologia religiosa, sobretudo sobre o corpo e a alma das mulheres –como debati numa mesa na Flip. Qual o equilíbrio? Esse o antigo debate de toda a filosofia moral.

Explicitando o mote deste texto. Caetano Veloso grava o hit gospel do pastor Kleber Lucas. Como disse Adriana Calcanhotto, vamos comer Caetano. Degluti-lo, mastigá-lo. Vamos saborear o banquete antropófago deste complexo país. Mas está um pouco difícil de digerir.

Nas próximas décadas talvez ainda precisemos de pastores, normas e igrejas. Mas o movimento histórico macro caminha em outra direção. Como sabemos, feliz ou infelizmente, os deuses estão mortos. Eu tenho de cuidar de mim e tecer a rede que cuidará de mim e dos outros. O pai está mais fraco e equivocado do que nunca, e o capital, cada vez mais perverso e sedutor.

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